sábado, 28 de agosto de 2010

NÃO ESPERE

MENSAGEM

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

PEDAGOGIA

POR QUE GOSTAMOS DE APRENDER?

Celso Antunes,

Existe uma enorme diferença no processo de aprendizagem revelado pelos animais e pelos homens.

Os animais aprendem porque necessitam aprender e dessa forma seu instinto e sua carga genética sinalizam a importância evolutiva de sua aprendizagem. Não existem animais “ignorantes” pois se assim o fossem, por certo não teriam elementos para sobreviver. É, portanto, possível concluir que os animais não aprendem por prazer, ainda que não poucas vezes gostam de deleitar-se e usufruir prazer com o que puderam aprender. O homem, nesse aspecto, é completamente diferente dos animais. São seres que também precisam aprender, mas fazem dessa ação algo além da necessidade, mostrando que gostam de aprender. Podem até não gostar de aprender aquilo que se lhes quer ensinar, mas quando a aprendizagem é livre não hesitam em desafiarem-se na iniciativa de cada vez querer saber mais e melhor. Diante da simplicidade desse quadro comparativo, emerge a pergunta: O que possui de diferente a espécie humana que a faz gostar de aprender?

Uma resposta mais imediata apontaria para suas inteligências.

O homem possui cérebro privilegiado em relação às demais espécies do reino e, dessa forma, tem meios para dar maior estímulo e maior dimensão às suas capacidades. Essa resposta é razoável mas não satisfaz, pois é, ao mesmo tempo, causa e efeito. O homem gosta de aprender porque é inteligente ou é inteligente porque gosta de aprender? A pergunta, no entanto, ainda fica e é por ela que aqui se especula. Pensamos assim que independente da qualidade incomparável de seus equipamentos cerebrais, o homem gosta de aprender porque sua espécie revela quatro atributos específicos. São eles:

O primeiro é sua curiosidade. As espécies animais mais evoluídas mostram-se curiosas, mas a dimensão desse anseio em nada se compara à humana. O homem é, literalmente, um enorme xereta, intrometido, bisbilhoteiro e isso o fez cientista e por isso avançou muito em suas descobertas, saciando com voracidade o apetite do saber. Além de extremamente curioso, é também o ser humano extremamente ousado arriscando-se muito além dos limites mínimos de segurança. Confiante em demasia, é mais destemido, mais petulante, mais corajoso e imprudente que qualquer espécie. Essa característica o difere dos mais ousados animais: os mamíferos possuem muita coragem quando estão famintos ou se defendem a prole, enquanto que a humanidade exercita a coragem por prazer, busca riscos por diversão, ousa pela euforia do ousar. Por assim ser, evoluiu construiu, desmanchou, edificou e solidificou-se como dominador absoluto e irrefletido da natureza.

Além da coragem e da ousadia, a humanidade é a única espécie a criar crenças como se fosse portador de um cérebro que não aceita explicações ilógicas, inventando respostas que progressivamente são mudadas. Essa capacidade em inventar respostas mesmo que não inteiramente satisfatórias fez do homem um ser criador e destruidor de hipóteses e, entre acertos e erros, mais acertou ainda que muito errou.

Finalmente, o homem é a única espécie que desenvolveu a habilidade em fazer de todos os seus sentidos ferramentas de aprendizagem. Aprendemos quando ouvimos, quando falamos, aprendemos pelo olfato, pelo tato e pelo paladar e, por isso mais que outros, melhor aprendemos. Intempestivo, nunca aceita um saber como completo e, dessa maneira, possui sentidos que desafiam-se entre si para que a aprendizagem seja mais ampla e mais eficiente.

Aqui chegando, chega-se ao centro maior da aprendizagem que, quer aceitemos ou não, é a escola. Ainda que a vida mais nos ensine, é a escola a instituição criada para ensinar e se assim o é, cabe a questão. A escola que temos exalta e aplaude a curiosidade do aluno? Nas aulas, a ousadia da criatividade é premiada? Existem estímulos e projetos sistemáticos para que os alunos sejam levados a construir, testar, destruir e inventar hipóteses? A escola usa todos os sentidos na aprendizagem? Propõe desafios intrigantes e curiosos voltados para a cooperação e a ação? Será que não exalta maior o ouvir que o ver, que o memorizar, que o explorar da intuição e do olfato?

Impossível imaginar as respostas que se dará a essas prosaicas questões. Sejam elas, entretanto, quais forem, pelas mesmas se identificará a qualidade da escola e a verdadeira ação educativa do professor, seu agente mais insigne.

Celso Antunes

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

LITERATURA PORTUGUESA

A Carta de Caminha: História ou ficção? (1)

1. Introdução

Podemos dizer que a Carta (2) do escrivão Pêro Vaz de Caminha é ficção? O que Caminha relata é fruto do seu imaginário (3);ou ele conta fatos verídicos sobre o "achamento" do Brasil? O que é verídico e o que é fingimento num texto? Nós (leitores) podemos mesmo identificar o que é real e o que é imaginado? E isto tem importância em si, ou depende da nossa intenção de leitura? Um leitor que toma a carta de Caminha somente pensando na sua notícia enquanto missiva fruirá a carta da mesma forma daquele outro leitor que busca nela identificações históricas, ou mesmo daquele que se deleita com a perspectiva de uma realidade brasileira vista por olhos estrangeiros?

Aí reside o ponto que quero ressaltar e que, no final das contas, resulta numa discussão sobre gênero e sobre um entendimento da literatura enquanto processo de comunicação que se concretiza na interação entre autor e leitor, por procedimentos de produção textual do autor e procedimentos de compreensão do leitor. Ou seja, um processo intersubjectivo que tem como base um texto, e neste caso, a Carta.

Se a linguagem literária para o próximo milênio requer rapidez, leveza, visibilidade, multiplicidade, exatidão e consistência, como quer Italo Calvino (4), ele certamente faz essa afirmação contextualizado neste momento onde a velocidade e os recursos visuais são palavras de ordem nos processos comunicacionais. O leitor atual, inserido em tal contexto, tem postura que reclama formas de comunicação mais rápida e de maneira mais leve e eficaz. Mas onde está inserida essa questão se aqui tratamos de um texto escrito no século XVI?

Lendo o texto de uma perspectiva comunicacional, não somente o seu autor é levado em conta mas, também, o seu leitor. A proposta é a de não subordinar a condição ficcional de um texto a padrões pré-estabelecidos, quando considerado o processo comunicacional para concretização do sentido. Por isso mesmo, passa pela intenção leitora considerar (ou não) um texto como literário.

Como é óbvio, ao reler um texto de uma época tão anterior, o leitor desse final de milênio o lê contextualizado neste momento em que vive. Ao retomar a história, o leitor redimensiona essa mesma história ao enriquecê-la com a sua leitura, segundo a sua perspectiva. Se o passado passa a ser um futuro que começa, se a história se faz no seu acontecer na possibilidade de novos problemas e novas contribuições para ela, como quer a visão da nova história (5), então, leituras da Carta certidão de nascimento do Brasil, 500 anos depois, certamente trarão novas contribuições para a História, devido às reflexões que necessariamente provocarão sobre o assunto.

Mas alguém que não conhece a História do Brasil poderia pensar no relato como uma produção do imaginário? Dependendo da intenção do leitor, poderá a carta ser lida de uma perspectiva histórica ou de uma perspectiva literária? Segundo a ótica de leitora brasileira, contextualizada às portas do século XXI e geograficamente situada na biosfera do descobrimento, vejo a Carta do escrivão Caminha como história e como ficção. Por esses raciocínios, penso que é possível lê-la como um texto literário e, dessa perspectiva, ressaltarei pontos sinalizados no texto que alicerçam a minha postura de leitora e, consequentemente, o meu argumento. Nestas considerações, não interessa emitir juízos de valor sobre o texto, mas tão somente interpretar o seu sentido. Entendo o processo literário com base na interação e na minha intenção de leitura voltada para os aspectos do texto considerados literários.

Para a discussão que aqui proponho, focarei dois pontos. Um primeiro diz respeito aos procedimentos da produção textual e resulta nas estratégias discursivas do texto e, neste caso, relacionadas ao posicionamento do narrador da Carta. Um segundo, diretamente ligado às questões da linguagem e à expectativa do leitor para o processo da comunicação que, de certa forma, pretende justificar o interesse que desperta, hoje, a leitura da Carta.

1. Procedimentos de produção textual

Quanto aos procedimentos da produção textual, inicialmente um movimento no processo da comunicação se faz quando Caminha, enquanto autor da missiva, assume posturas diferentes quando produz o texto e se faz narrador (6). Nesse caso, fica evidente a condição do narrador em duas visões consideradas como do ver e do parecer (ter impressão de), para utilizar as expressões da própria Carta. A primeira, ligada ao relato, parte do vivenciado, que funciona como referente (7) da história. A segunda, que insinua a ideologia do branco europeu, fundamenta-se nas impressões sobre o vivenciado ou o ouvido. Essas perspectivas que sustentam as questões do imaginário formuladoras do sentido textual, induzem a pensar num sujeito do enunciado (o narrador) e num sujeito da enunciação (o produtor).

Obviamente e já foi dito, o autor da Carta é Pêro Vaz de Caminha, o escrivão da nau capitânia, comandada por Pedro Álvares Cabral, que num dia do ano de 1500 partiu da Torre de Belém, de Lisboa. O posicionamento do narrador ocorre por relatos sobre o que é constatado por Caminha ou impressões sobre o que, por ele, é visto. São relatos do acontecer e das ações dos portugueses e dos indígenas; e são impressões e descrições sobre a nova terra (sua flora, sua fauna, a aparência e os costumes dos seus habitantes), dirigidos a el-rei D. Manuel, o venturoso. O missivista define espaço (terra nova) e tempo: "terça-feira de Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril" (p. 6). A depender da intenção da leitura e das vivências do leitor, esse espaço e esse tempo podem ser vistos como ficcionais (8). Se admitirmos que a história e a ficção têm denominadores comuns (9), entenderemos as razões que induzem a compreender estar na intenção da leitura a decisão de considerar se um texto é história ou ficção.

Mas esse autor, enquanto produtor textual, conta coisas somente vistas e vivenciadas por ele? Se o relato é somente do homem português, temos uma única perspectiva do acontecimento: a do branco. Nesse caso, podemos garantir a sua fidedignidade? A estrutura da carta demonstra um posicionamento produtor que dá margem ao leitor fazer interpretações de níveis de veracidade (10) do fato contado? A perspectiva será mesmo e sempre a de Caminha? Para uma reflexão sobre a questão posta, cabem algumas considerações sobre o enunciado (a carta) e a enunciação (ato da escrita) no que se refere ao sujeito que constrói um discurso (efeito de sentido).

Na abertura da sua carta, Caminha, sabendo-se um narrador dentre muitos outros da frota, sabe também que uma mesma realidade pode ser vista e interpretada de diversas óticas: "Mesmo que o Capitão-mor desta vossa frota e também os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta vossa Terra Nova [...] não deixarei também, de dar disso minha conta" (p. 6). A postura autoral expressada anuncia as possibilidades do narrador e o seu desejo quanto ao relato: "tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade". Na introdução, define o objetivo do seu relato, que se limitará à chegada à nova terra: "do caminho não darei aqui conta [...] o que hei de falar começo e digo" (idem). Diz da sua intenção de escrita – "não hei de por aqui mais que aquilo que vi e me pareceu, nem para aformosear, nem para afear"- que insinua, ainda, a estrutura do texto, entre relato e impressões. Tal posicionamento do narrador passa ao leitor a .idéia das perspectivas do relato em ver e parecer, ou seja, na escrita estruturada nos dois planos referidos ou seja do ver (o acontecendo) e do parece ser (impressão sobre o acontecendo).

No primeiro caso, os movimentos da marinhagem, os comandos do capitão-mor, as ações de embarque e desembarque, as tentativas de comunicação com os indígenas são afirmativas da perspectiva do ver, que referem a história. Nesse caso, os relatos são afirmativos, minuciosamente descritivos, informativos e objetivos: "Mandou armar naquele ilhéu um esperável e dentro dele um altar muito bem arranjado. E ali como todos nós fez dizer a missa" (p. 11).

Mas esse narrador Caminha que não narra somente pelo que diretamente vivenciou e viu, indiretamente relata de fatos vivenciados por outros tripulantes, realizando uma estratégia textual que possibilita correlações semânticas relacionadas ao narrador textual. Um exemplo é o de Nicolau Coelho: "O Capitão mandou no batel, à terra, Nicolau Coelho para ver aquele rio [...] quando o batel chegou à foz do rio estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que cobrisse suas vergonhas. [...] Não pôde ter deles fala nem entendimento que aproveitasse porque o mar quebrava na costa. Apenas lhe deu um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto" (p. 7). Agora, o narrador Caminha conta aquilo que Nicolau Coelho viu e relatou pois refere as ações de um terceiro. Outra vez, quando acompanha o mesmo Nicolau Coelho por ordens do Capitão, inclui-se na pessoa narrativa: "a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos então retos, direitos à praia" (f. 4). Ocorre, por essa estratégia, o processo de narrador dentro de outro narrador (11). Embora a perspectiva textual venha do personagem que narra em primeira pessoa, ocorrem, assim, narradores indiretos, que falam pela boca do escrivão. Dessa forma, ocorre multiplicidade nas vozes que se interpõem à voz de Caminha, fazendo com que o leitor "ouça", pela boca do escrivão, coisas ditas, comandos ou, mesmo, relatos de outros. É diferente a sua postura de narrador quando assume a primeira pessoa do plural, como participante da ação: "Na sexta-feira pela manhã [...] mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela e fomos ao longo da costa com os batéis e os esquifes amarrados pela popa, para norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde estivéssemos, para tomar água e lenha" (F2, grifo meu). Em outro momento diz: "mas nem me pareceu a mim que lhe tinham acatamento nem medo" (F. 17). Fica claro, no entanto, que a ação do escrivão é de observação, sem poder de decisão sobre os acontecimentos.

Numa segunda perspectiva, as sensações, o deslumbramento, as descrições parecem ser as de um estrangeiro extasiado com uma realidade nova em relação às suas vivências. As impressões, ligadas a sentimentos e crenças do escrivão Caminha, insinuam o imaginário do produtor do texto. Insinuam, ainda, uma possível intenção autoral e permitem que o leitor faça inferências de sentido: "Esta missa , segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção" (F. 16). Como poderia o narrador afirmar o sentimento dos indígenas? Evidencia-se a ideologia subjacente no processo da enunciação. Ligado às vivências, está ainda o conhecimento ou desconhecimento da cultura e costumes do povo, que a enunciação faz supor: "E alguns deles se meteram em almadias, duas ou três que aí tinham, as quais não são feitas como as que já vi. Somente são três traves atadas juntas" (F. 18). A nossa jangada era desconhecida dos portugueses.

Ainda, pela impressão que lhe causam os indígenas, o narrador descreve-os: "andam muito bem curados e muito limpos e nisso me parece, ainda mais, que são como aves, ou alimárias monteses [...] E isso me faz presumir que não têm casas nem moradas em que se acolham" [f. 19] Observemos que quando fala das suas impressões Caminha o faz em primeira pessoa do singular, mas quando relata fatos vivenciados juntamente com os outros o faz na primeira do plural: "Nós não vimos, até agora, ainda, nenhumas casas nem maneira delas" [idem] ou: "Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram, então, muitos [...] e estiveram afastados de nós" (f. 19).

Na perspectiva da impressão, além da interpretação segundo as vivências do narrador, está ainda a não certeza quanto ao relatado: "parece-me que viriam este dia à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta [...] Comiam conosco do que lhes dávamos e bebiam, alguns deles, vinho e outros o não podiam beber. Mas parece-me que se lho avezarem que o beberão de boa vontade". A comunicação somente estabelecida pelas ações ou pelo que se interpreta justifica a reiteração do verbo parecer: "Parece-me gente de tanta inocência que se a gente os entendesse e eles a nós, que seriam logo cristãos [...] essa gente é boa e de boa simplicidade" (F. 21). O juízo de valor que emite Caminha em relação aos indígenas (aliás o único da carta) faz parte do nível das impressões, e é reiterado adiante: "a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior quanto a vergonha" (f. 23).

2. A linguagem comunicativa

A comunicação que esperamos em relação à Carta passa por leituras que procurarão a leveza, a rapidez, a visibilidade, a consistência, algumas das categorias sugeridas por Italo Calvino para a linguagem, face à expectativa do leitor deste final de milênio e às características destes tempos de velocidade. Haverá isto na Carta escrita no século XVI? Creio poder apontar alguns desses aspectos, afirmativos das exigências do leitor dessa nossa época para a linguagem.

Se considerarmos dotado de leveza o texto que expressa uma linguagem solta, graciosa, desembaraçada por oposição àquela pesada, cortante, fria, carregada (12), poderemos dizer que o discurso da Carta contém leveza.leveza nas descrições da flora e da fauna, na observação dos costumes, na surpresa e espanto do estrangeiro. Aspectos da escrita contribuem, também, para tal idéia, e exemplo disso são os recursos das rimas e dos trocadilhos como sugerem alguns trechos referentes à descrição do local descoberto: "Águas são muitas e infindas. De tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem" (f. 23). Descrevendo os indígenas, o narrador usa de trocadilhos: "Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho e quartejados, tanto pelos corpos como pelas pernas, que, na verdade assim pareciam bem.[...] Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tingidas e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas que não havia nisso nenhuma vergonha" (F.18)

A rapidez ocorre na agilidade textual, onde datas e espaços não significam retardamento do texto, onde não acontecem digressões e circunlóquios, onde o relato é direto, enxuto e de ações concatenadas: a chegada das naus/ o desembarque/ a primeira missa/ a descrição da terra/ o contato com os indígenas. As descrições sobre a terra e sobre os seus habitantes não imprimem lentidão ao texto, tal a agilidade da linguagem: "Esta terra [...] traz ao longo do mar, em alguma partes grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos, de ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa" (p.20). As imagens, visualizadas na descrição detalhada dos indígenas e no relato dos seus costumes, são nítidas e claras: "Seus cabelos são corredios e andavam tosquiados, de tosquia alta mais do que sobre-pente, de boa grandura e raspados até para cima das orelhas" (p. 8).

A visibilidade envolve os processos imaginativos do produtor textual e do leitor virtual (14). No caso do produtor no ato da escrita, a possível intencionalidade na ficcionalização do imaginário manifesta-se, como bem observa Wolfgang Iser, "nos campos de referência do texto" (1979, 390). A propósito disto, já Calvino questiona "de onde provêm as imagens que chovem na fantasia? (1988, 102). Se as imagens são provenientes do mundo, de outro texto, ou de algum mito (14), na Carta, essa característica da linguagem provém da terra Brasil e evidencia-se na plasticidade das descrições (claras e fortes) sobre a flora e a fauna ou sobre os indígenas: "eles traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam uns espelhos de borracha; e alguns deles traziam três daqueles bicos, da seguinte maneira: um no meio e dois nos lados; e andavam ainda outros quartejados de cores; assim: metade do corpo da própria cor; outra metade de tintura negra, de tom azulado; outros quartejados de xadrez"(...). Ao longo do texto, as imagens do mundo novo repetem-se ampliadas, vistas de ângulos variados, ressaltando de forma especial o colorido: "papagaios vermelhos muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores" (p. 15). A mais forte imagem, porém, está ligada à descrição dos habitantes da terra, à sua simplicidade, ao seu exotismo: "daquelas pinturas quartejados, outros de metade, outros de tanta feição como em panos de armar, e todos com os beiços furados e muitos com ossos neles e deles sem ossos" (p. 15).

A consistência ressalta as constituições de sentido (15) possíveis que fazem o leitor inferir sobre a cultura, os costumes, a ideologia subjacentes no texto. Se considero que a consistência resulta de determinados esquemas de ação que remetem o leitor, a cada leitura, para uma dimensão diversa do sentido, depreendo que um texto será tanto mais consistente quanto mais vazios ele apresentar (16). Nessa acepção, apresentará a Carta alguma consistência? Afora o relato do acontecer e da própria tomada de posse da terra determinante de uma primeira constituição de sentido, há uma outra, consubstancializada no confronto entre as culturas branca e indígena: "eles não lavram nem criam nem há aqui boi nem vaca, nem cabra, nem galinha nem nenhuma outra alimária que seja acostumada ao viver dos homens" (p. 18). Uma outra mais é possível se atentarmos para as diferenças dos costumes insinuados na explicitude dos costumes indígenas e na implicitude do dos brancos: "em cada casa se colhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os achavam e que lhes davam de comer daquela vianda, a saber, muito inhame e outras sementes que na terra há" (p.15). Ainda a ideologia subjacente é determinante de mais uma constituição de sentido: "se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual, praza Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, essa gente é boa e de boa simplicidade e gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar" (f.21). Dessa forma, para além do relato do achamento da Terra de Santa Cruz, processos associativos provocam deslocamentos de sentido para as questões culturais, religiosas e sociais.

Segundo o relato do escrivão, a comunicação entre portugueses e indígenas acontece por gestos e atitudes e não por palavras. É concretizada de acordo com as conveniências dos brancos e, dentre eles, Caminha inclui- se: "Viu, um deles, umas contas de rosário, brancas e acenou que lhas dessem; folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço; depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para terra e então para as contas e para o colar do Capitão, como que dariam ouro por aquilo. Isto entendíamos nós, por assim desejarmos; mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, porque lho não havíamos de dar". Evidentemente o narrador Caminha somente poderia prever ou mesmo relatar as ações relativas aos seus compatriotas, por conhecimento das suas vivências.

Como observa Eco, "os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto" (1990, 17); entendendo assim. depreendo que a intenção da leitura dá o direcionamento de gênero de um texto. Se identificar a história ou a ficção num texto passa por um conhecimento do real por parte do leitor, não poderíamos dizer que o texto é histórico e é ficcional a depender da intenção da leitura? Dessa perspectiva, um leitor que não conheça a sua história, nem quaisquer referências sobre a Carta poderá considerar o texto do escrivão história ou ficção. Nesse caso, eu diria que a Carta de Pêro Vaz de Caminha além de certidão de nascimento do Brasil, como muitos historiadores afirmam, poderá, num tempo, ser considerada, também, o primeiro texto ficcional escrito sobre um imaginário calcado nas terras do Brasil

NOTAS:

(1) Este texto integra o livro Caminhos da Ficção. Salvador: EPIGRAF, 1996, p. 61-76.

(2) Leitura realizada segundo a versão atualizada por Henrique Campos Simões, publicada nesta edição especial da Revista FESPI. A indicação dos trechos citados da Carta remetem à paginação desta referida edição.

(3) O imaginário é fluido e abstrato e efetiva-se no sentido; esse é ambíguo por excelência e "à diferença do imaginário, ele é dotado de forma e à diferença do real, é irreal" (Iser: 1979, 879).

(4) Seis Propostas para o Próximo Milênio: lições americanas,1988.

(5) Jacques Le Goff e Pierre Nora. Faire de L’Histoire. Paris, Gallimard, 1974.

(6) Vale observar a distinção entre autor, produtor e narrador: Falo de autor, somente quando preciso me referir àquele sujeito que vivenciou a história (o escrivão). Considero produtor aquele que tem uma posição a ser preenchida no texto, é somente ‘inferido’ pelo leitor (suj. da enunciação). Entendo como narrador aquele que, identificado ou não com o personagem, é o responsável pelo desenrolar da ação ficcional (suj. do enunciado).

(7) Referente é aqui entendido como alusão à realidade (Brooks: 1983, 74).

(8) Para ilustrar a justificativa, vale estabelecer analogias com outros relatos considerados ficcionais; por exemplo, quem garante que a narrativa de Daniel Defoe sobre Robson Crusoé não poderia ser verídica, a não ser pelo fato de o próprio autor a declarar ficcional?

(9) Ao discutir sobre as aproximações entre a história e a ficção, Linda Hutcheon considera como "denominadores comuns em termos de narrativa: a teleologia, a causalidade, a continuidade" (1987, 123)

(10) Tomo a palavra veracidade na acepção de verdade do fato acontecido, na hipótese de se ler o texto como história. Tomo-a como perspectiva ficcional ligada à verossimilhança, se a Carta for lida como texto literário.

(11) A esse respeito, Umberto Eco fala de texto e paratexto (1994, 26).

(12) Italo Calvino opõe leveza a peso, sem que tal oposição implique critério de valor; a propósito, afirma que: "não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso" (1988, 27)

(13) A visibilidade é aqui considerada como resultante de dois processos imaginativos, um relacionado com a "idéia de imaginação como participação na verdade do mundo" (Calvino,: 1988, 104), ligado à produção do texto; outro, que envolve as visões obtidas do texto pelo leitor.

(14) Simões, M.L.N. As Razões do Imaginário. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/ EDITUS, 1998.

(15) Entendidas como níveis de interpretação, relacionados com a "provável intenção do autor e as possíveis intenções dos leitores, uma vez que elas sugerem o sentido do texto que é concretizador do imaginário" (Simões: 1998, 24).

(16) Sobre vazios, diz W. Iser que eles "derivam da indeterminação do texto [e] não estão apenas no repertório, mas também nas estratégias" (1976, 106-8).


Referências Bibliográficas:

Calvino, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: lições americanas, trad. de Ivo Barroso. São Paulo, Schwarcz, [1988] 1991.

Eco, Umberto. Os Limites da Interpretação, José Colaço Barreiros, Lisboa, Difel, 1990.

Eco, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, trad.: Hildegard Feist, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1994.

Gumbrecht, Hans Ulrich. "Sobre os Interesses Cognitivos, Terminologia Básica e Métodos de uma Ciência da Literatura Fundada na Teoria da Ação", trad.de Heidrun Krieger e Luiz Costa Lima, revisão de Peter Naumann. in: Lima, Luiz Costa (ed.) A Literatura e o Leitor. Textos de Estética da Recepção, Rio de Janeiro, Paz e Terra, [ 1977] 1979.

Le Goff, Jacques; Nora, Pierre (Dir.). Présentation, in: Faire de L'Histoire. Paris Gallimard. Vol. 1: Nouveau Problèmes, 1974.

Hutcheon, Linda. A Poética do Pós-Modernismo. Trad : Ricardo Cruz, Rio de Janeiro, Imago, 1988.

LITERATURA

OPERADORES ARGUMENTATIVOS

NEORREALISMO PORTUGUÊS

O Neorealismo é uma escola que elege para tema fundamental da obra literária assuntos relacionados com o condicionalismo sócio-económico dos povos e analisa a luta de classes que ele implica, visando, na linha ideológica do marxismo, contribuir para o desaparecimento da exploração do homem.

Como se conclui da definição dada, o Neo-Realismo baseia-se na interpretação dinâmica do materialismo dialéctico. Para os marxistas, a cultura, a arte, a religião, o direito os costumes, o próprio conceito de natureza humana não passam de super-estruturas das infra-estruturas econômicas. Ora, como as realidades econômica se vão transformando pela luta de classes, segue-se logicamente que as super-estruturas delas derivadas e nelas assentes se têm de transformar também e, de facto, se transformam. Daqui se deduz que a cultura, a arte, as crenças religiosas, as leis, os costumes, tudo o que o homem em determinado momento pensa de si (o que, segundo os marxistas, constitui a sua natureza) não são realidades imutáveis, mas realidades em contínuo evoluir. É o homem que se faz e, ao fazer-se, faz a história.

Diante desta evolução dialéctica, o literato pode assumir duas atitudes. A primeira é aceitar o mundo tal qual ele é, conformar-se com ele sem combate, e então a obra literária não passará de uma recriação de super-estruturas aéreas e efêmeras, reflexo esclerosado de realidades que tendem a desaparecer. A segunda é apreender o homem na sua totalidade, com implicações não só biológicas e psicológicas mas também sócio-económicas. Neste caso, como as realidades sócio-económicas evoluem pela dinâmica da luta de classes, o literato integrar-se-á automáticamente no evoluir da história, fomentando-o. Só esta atitude é válida para os marxistas. Na verdade, a missão do escritor, depois de estar na posse das leis da evolução dialéctica da vida da humanidade, é tornar conhecidas essas leis, com o que apressará o movimento evolutivo através do qual o homem se faz pela história, fazendo a história por sua vez. Foi isto que Idanov quis dizer, no Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos (1934), ao afirmar que incumbe ao Realismo socialista “a tarefa de transformação ideológica e de educação dos trabalhadores no espírito do socialismo.”

Sendo isto assim, o artista, que se transforma numa força apreciável, terá de comprometer a obra literária no evoluir histórico. Porá de parte a “arte pela arte” e criará uma literatura de tese. Nessa literatura, o tema fundamental será a luta de classes, a luta entre exploradores e explorados, corporizada numa espécie de dicotomia maniqueísta em que o capitalista e o burguês representam todo o mal humano e em que o proletário simboliza a defesa da verdade histórica e da justiça. O escritor neo-realista combaterá evidentemente ao lado do proletariado contra o capitalismo e a burguesia que o escravizam, contradizendo na teoria e na prática a tese do fatalismo sociológico da pobreza.

Implantação em Portugal do Neo-realismo

Entre nós, desde o século XIX, o romance insistia sobretudo na análise do individuo não caracterizado como elemento de classe. Nas primeiras décadas do século XX, persiste ainda a mesma técnica narrativa tradicional: academicismo, culto do pitoresco histórico e regional, primado do estilo como elemento estético. Baldados os esforços de modernidade de Raul Brandão e Almada Negreiros, o movimento da Presença arredou-se um pouco da linha tradicional, mas ficou-se pela análise psicológica de indivíduos neutros, sem consciência de classe.

No primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos em 1934, Gorki lançou a palavra de ordem do que chamou realismo social. Por essa altura, em países ocidentais como América do Norte e o Brasil, muitos romancistas agitavam nas suas obras assuntos socio-económicos numa linguagem crua. Todo o mundo se interessou pelo novo tipo de literatura, sobretudo quando as primeiras conquistas do socialismo foram esmagadas pelo imperialismo financeiro que, sob o nome eufônico de “nacionalismo”, impôs em vários países do mundo regimes militares ditatoriais.

Também em Portugal se começou então a notar certo interesse pelo realismo social. A nova corrente literária, ainda que embrionariamente, ia-se manifestando em artigos que apareceram em revistas criadas por alturas do citado Congresso dos Escritores Soviéticos em 1934; Gleba (Lisboa, 1934), Outro Ritmo (Porto, 1934), Agora (Coimbra, 1934), Gládio (1935) e também no “órgão do Instituto de Cultura Socialista” Pensamento (Porto, 1930).

Coimbra franqueava nessa época as portas da Universidade a estudantes pequeno-burgueses, alguns deles oriundo de meios humildes. Desejosos de combater a opressão, começaram por adoptar o combativismo da Geração de 70, dos coriféus da primeira República e dos homens da “Seara Nova”. Ouviam com sofreguidão emissoras estrangeiras, folheavam revistas fornecidas por embaixadas, desencadeavam movimentos cívicos e estudantis, logo reprimidos. E liam o novo romance americano de Hemingway, John dos Passos, Steinbeck, e sobretudo os autores brasileiros Jorge Amado, Armando Fontes, Lins de Rego, Graciliano Ramos.

Os jovens neo-realistas portugueses contestaram logo de início o socialismo utópico da Geração de 70 ou qualquer outro tipo de humanitarismo laico. Contraditoriamente aos realistas burgueses do século XIX, inclinaram-se mais ou menos abertamente pra o socialismo marxista. Mas, nas circunstâncias políticas da época, não lhes foi possível uma assimilação perfeita do materialismo dialéctico. A todos faltava uma solida formação filosófico-científica, não obstante alguns terem acesso a obras clássicas na matéria, que lhes chegavam por via francesa: de George Friedmann (La Crise Du Progrès), de Henri Lefêcbre e Norbert Gutermann (La Conscience Mystifiée), de Aragon (os romances do ciclo“Le Monde Réel”) e também de Plekanov (A Arte e a Vida Social).

Foi por isso talvez que os pioneiros da escola, nos seus começos e até 1950, se entretiveram sobretudo com a polémica que ficou conhecida pelo nome de “batalha pelo conteúdo contra a arte pela arte”. O alvo dos seus ataques foram os escritores da “Presença”, como se sabe, totalmente divorciados dos temas políticas e sociais. Na esteira de afirmações isoladas de Jorge Amado e Alves Redol, chegaram mesmo a advogar para o livro neo-realista a categoria de “documento” de preferência à categoria de “literatura”. Contra o desprezo da forma no estilo neo-realista cedo se insurgiria Mário Dionísio, decretando-se mais tarde que o descuido da “literariedade” não podia constituir de forma alguma um preceito do Neo-Realismo.

A polémica a que aludimos, envolvendo do lado presencista José Régio, Casais Monteiro e outros, foi sustentada por Alves Redol, Gomes Ferreira, Mando Martins, António Ramos de Almeida, Afonso Ribeiro, Álvaro Cunhal, Mário Dionísio. Escreviam nas revistas do Sol Nascente (Porto, 1937-1940), e nas citadas Pensamento, Gleba, Outro Ritmo, Agora, Cládio, Seara Nova, etc.

Como a censura política, ciosa e atenta, obstava à divulgação do Neo-Realismo através da informação periódica, os coriféus da escola acharam bem optar pela obra literária: poesia, conto, novela, romance. Lançaram-se nesse campo. Aparecem então iniciativas editoriais aglutinantes do movimento: o “Novo Cancioneiro” (Coimbra, 1941-1944) e “Cadernos Azuis” (Porto, 1941); surgem logo a seguir obras narrativas. Com bastantes imperfeições técnicas geradas por tantas contrariedades, o Neo-Realismo acabou, apesar de tudo, por se implantar na nossa literatura.

Costuma indicar-se como início da escola em Portugal o ano de 1940 (mais concretamente Dezembro de 1939), data em que apareceu o romance de Alves Redol Gaibéus. Mas, omitindo o nome de Ferreira de Castro, não devemos esquecer que indícios claros de Neo-Realismo aparecem já em alguns poemas de Mário Dionísio publicados em Sol Nascente (1937), nos contos de Afonso Ribeiro Ilusão da Morte (1938), nos livros poéticos de António Ramos de Almeida Sinal de Alarme (1938) e principalmente Sinfonia de Guerra (1939, e em poesias dispersas de Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado, Álvaro Feijó, Políbio Gomes dos Santos, João José Cochofel, aparecidas em 1939 nas revistas Sol Nascente, O Diabo, Seara Nova, Altitude, etc.

Por alturas chamada “Guerra Fria” (anos 50), o Neo-Realismo foi vítima de convulsões internas que o debilitaram. Dificuldades em congraçar o marxismo com a literatura de vanguarda e discussões antigas de fundo e forma levaram os Neo-Realistas a um esgrimir contraproducente nas revistas Mundo Literário (anos 1946-1947), Ler (ano 1952), e Árvore (anos 1951-1953). Muitos escritores evoluem então para o existencialismo, enquanto outros que, em oposição ao Neo-Realismo, haviam continuado agarrados ao psicologismo presencista, tentam o imaginismo poético e o surrealismo. Mas a literatura de intervenção e empenhamento social, mais ou menos ataviada de formalismos neo-realistas, tem encontrado nas últimas décadas os seus apaniguados, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo que crescem os estudos monográficos e análises gerais da história pátria baseados numa focagem de teor marxista das infra-estruturas econômico-sociais.

O romance neo-realista português

Vamos destacar que a acção do romance neo-realista normalmente é aberta, sem progresso dramático linear, composta em geral por uma acumulação de factos, de quadros panorâmicos, só ligados entre si pelo narrador e pela homogeneidade de situações que são muitas vezes símbolos. Desta forma, a intriga de tipo tradicional ou não existe ou corre diluída em fragmentações do gênero “reportagem”. E, a princípio, muitas obras neo-realistas nem sequer conseguiam ultrapassar um vulgar nível panfletário.

As personagens são quase sempre colectivas, grupos antagônicos constituídos, de um lado, por representantes do capital e, de outro, por conjuntos de trabalhadores agrícolas e (mais raramente) de operários esmagados pela ganância de uma minoria dirigente, localizados em zonas bem determinadas. A estreita localização destes grupos trouxe para o neo-realismo português uma característica que não abona: o regionalismo alentejano.

Estas personagens não figuram na acção como caracteres psicologicamente estudados mas apenas como tipos de uma classe. Se há um protagonista que merece destaque, é por ser o mais atingido entre a multidão ou por reflectir as reacções do todo. Por isso, o romance neo-realista abandona a personagem vista nos salões através da psicologia tradicional, para descer à personagem vista nos salões através da psicologia tradicional, para descer à personagem vulgar do campo ou da fábrica, conhecida por processos behavioristas, anotadores de um comportamento externo que se reduz a gestos de protesto social e também a atitudes de revolta contra o fatalismo do meio geográfico. Diante dos factores materiais e das forças sociais que as bloqueiam, as personagens neo-realistas não esboçam qualquer atitude de espiritualidade.

O autor observa as situações com neutralidade pelo menos aparente, coloca os protagonistas no ambiente próprio, deixa-os agir e viver uma vida muito real; faz depois “jornalismo”, reportagem. Selecciona, no entanto, as situações a analisar e, quando calha, põe-se a interpretar os factos em função do fim que tem em vista. Com efeito, os neo-realistas são radicalmente objectivos, recriando a realidade social. Mas o subjectivismo não lhes é de todo estranho, pois não se limitam a recriar a realidade: orientam-na para transformações profundas com que sonham e em que estão empenhados.

Minimizam os neo-realistas o cuidado da forma (que julgam encobrir ou pelo menos esfumar a verdade do romance) e, uma vez ou outra, no afã de retratar a realidade do modo mais simples possível, chegam a descurar as regras gramaticais. Foi neste sentido que a polémica com os presencistas orientou inicialmente a estética da escola. Contra este desprezo da forma insurgiu-se, como dissemos já, Mário Dionísio.

O autor neo-realista gosta de pôr na boca das personagens a linguagem popular regional, como se a tivesse gravado do natural em fita magnética e a repetisse. Leva o diálogo muitas vezes a assumir funções narrativas. Emprega frases curtas, bem adaptadas ao pensamento conciso que o domina. Com tendência para a substantivação do real, usa moderadamente o adjectivo.