segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Linguística Aplicada

VI Congresso da ALSFAL será em Fortaleza
Seg, 05 de Julho de 2010 08:32

A Universidade Estadual do Ceará (UECE) através do Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada - PosLa do Centro de Humanidades (CH) anfitrionará no período de 05 a 09 de outubro de 2010, o VI Congresso da Associação de Lingüística Sistêmico-Funcional da América Latina (ALSFAL). O evento foi organizado em torno do tema “A Lingüística Sistêmico-Funcional e seu potencial de empoderamento semiótico-discursivo”.

Segundo o professor Pedro Henrique Lima Praxedes, coordenador do VI Congresso da ALSFAL, a programação consta de 14 minicursos, 06 conferências plenárias e 11 mesas redondas, para essas atividades estarão presentes pesquisadores dos seguintes países: Chile, Colômbia, Brasil, Argentina, Venezuela, México, Estados Unidos, Canadá, Portugal, Itália, Finlândia, Hong Kong, Austrália, Singapura e Japão. Estão sendo recebidas, em 3a. chamada até 18/07/10, inscrições de propostas de trabalhos para serem apresentados em sessões de comunicações individuais ou coordenadas e em sessões de pôsteres. Para maiores informações, visite o site do evento www.6alsfal-uece.com.br.


quinta-feira, 16 de setembro de 2010

MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - UECE

http://www.politicasuece.com


A Universidade Estadual do Ceará (UECE) está com inscrições abertas até o dia 30 de setembro, para a seleção do curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS). Os interessados podem se dirigir à Secretaria do Mestrado, no Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESA), no Campus do Itaperi, no horário das 8h30 às 12h e das 14h às 17h. O curso oferece 25 vagas, distribuídas entre três linhas de pesquisas: Estado, Democracia e Participação Social; Planejamento e Gestão de Políticas Públicas; Avaliação de Políticas Públicas, Programas e Projetos Institucionais.


Segundo informa o Professor Geovani Jacó de Freitas, coordenador do mestrado, poderão inscrever-se professores universitários e profissionais graduados em cursos das áreas humanas, sociais aplicadas e afins, refletindo a multiprofissionalidade do campo dos saberes e práticas, buscando uma articulação interdisciplinar.


O processo seletivo se dará em três etapas, e tem caráter classificatório:

1ª fase Eliminatória – Anteprojeto de Pesquisa, o candidato deve elaborar um texto onde desenvolva um tema de seu interesse na área de Políticas Públicas.

2ª fase constará de uma Prova de Línguas com opção entre Inglês, Francês e Espanhol, e prova Dissertativa.

Na 3ª fase acontecerá a Entrevista.


O Curso exige cumprimento de 55 créditos, (16 para as disciplinas obrigatórias gerais e 09 créditos em disciplinas opcionais), a serem realizadas no prazo de um ano. E a dissertação (30 créditos), a concluir no ano subseqüente. As disciplinas serão ministradas de segunda a sexta-feira, das 14h às 18h prioritariamente no turno diurno, sendo exigido na ocasião da matrícula, documento comprobatório de disponibilidade de tempo para cumprimento do curso. Serão considerados aprovados os candidatos classificados até o limite das vagas.

Mais informação no fone: 3101. 9887

terça-feira, 14 de setembro de 2010

II FÓRUM DE LINGUÍSTICA APLICADA - UFC

Encontram-se abertas até 20 de setembro as inscrições para a segunda chamada de trabalhos para o II Fórum de Linguística Aplicada e Ensino de Línguas da Universidade Federal do Ceará.O evento é realizado a cada dois anos e a segunda edição ocorrerá de 24 a 26 de novembro tendo como tema Formação de Professores e Ética.

O Fórum, coordenado pelas Profas. Eulália Fraga Leurquin e Lívia Rádis Baptista, é uma atividade do Grupo de Estudos e Pesquisas em Linguística Aplicada (GEPLA), do Programa de Pós-graduação em Linguística e do Departamento de Letras Vernáculas da UFC. A organização é de responsabilidade da UFC, em parceria com a Universidade Estadual do Ceará (Uece), a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a Secretaria de Educação do Estado do Ceará(Seduc/CE), a Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza (SME) e a Faculdade 7 de Setembro(FA7).

Vários professores-doutores da área já confirmaram presença no evento, como Daniel Faïta (Université Provence), Francine Cicurel (Université Paris XIII), Bernadete Abaurre (IEL/Unicamp), Antónia Coutinho (Universidade Nova de Lisboa), Rajagopalan Kanavillil (Unicamp), John Robert Schmitz (IEL/Unicamp), Vera Cristóvão (Universidade Estadual de Londrina), Ana Maria Guimarães (Unisinos), Antonia Dilamar de Araújo (Uece), Luciane Côrrea Ferreira (UFMG), Maria Cristina Micelli Fonseca (UFC), Cleudene Aragão (Uece), Clézio Bunzen (Unifesp), Lívia Suassuna (UFPE), Gretel Eres Fernández (FEUSP), Marcos Bagno (UnB) e Roxane Rojo (IEL/Unicamp).

Mais informações podem ser obtidas através do blog http://flael2010.blogspot.com/, onde o interessado encontra link de inscrição

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

PEDAGOGIA

POR QUE GOSTAMOS DE APRENDER?

Celso Antunes,

Existe uma enorme diferença no processo de aprendizagem revelado pelos animais e pelos homens.

Os animais aprendem porque necessitam aprender e dessa forma seu instinto e sua carga genética sinalizam a importância evolutiva de sua aprendizagem. Não existem animais “ignorantes” pois se assim o fossem, por certo não teriam elementos para sobreviver. É, portanto, possível concluir que os animais não aprendem por prazer, ainda que não poucas vezes gostam de deleitar-se e usufruir prazer com o que puderam aprender. O homem, nesse aspecto, é completamente diferente dos animais. São seres que também precisam aprender, mas fazem dessa ação algo além da necessidade, mostrando que gostam de aprender. Podem até não gostar de aprender aquilo que se lhes quer ensinar, mas quando a aprendizagem é livre não hesitam em desafiarem-se na iniciativa de cada vez querer saber mais e melhor. Diante da simplicidade desse quadro comparativo, emerge a pergunta: O que possui de diferente a espécie humana que a faz gostar de aprender?

Uma resposta mais imediata apontaria para suas inteligências.

O homem possui cérebro privilegiado em relação às demais espécies do reino e, dessa forma, tem meios para dar maior estímulo e maior dimensão às suas capacidades. Essa resposta é razoável mas não satisfaz, pois é, ao mesmo tempo, causa e efeito. O homem gosta de aprender porque é inteligente ou é inteligente porque gosta de aprender? A pergunta, no entanto, ainda fica e é por ela que aqui se especula. Pensamos assim que independente da qualidade incomparável de seus equipamentos cerebrais, o homem gosta de aprender porque sua espécie revela quatro atributos específicos. São eles:

O primeiro é sua curiosidade. As espécies animais mais evoluídas mostram-se curiosas, mas a dimensão desse anseio em nada se compara à humana. O homem é, literalmente, um enorme xereta, intrometido, bisbilhoteiro e isso o fez cientista e por isso avançou muito em suas descobertas, saciando com voracidade o apetite do saber. Além de extremamente curioso, é também o ser humano extremamente ousado arriscando-se muito além dos limites mínimos de segurança. Confiante em demasia, é mais destemido, mais petulante, mais corajoso e imprudente que qualquer espécie. Essa característica o difere dos mais ousados animais: os mamíferos possuem muita coragem quando estão famintos ou se defendem a prole, enquanto que a humanidade exercita a coragem por prazer, busca riscos por diversão, ousa pela euforia do ousar. Por assim ser, evoluiu construiu, desmanchou, edificou e solidificou-se como dominador absoluto e irrefletido da natureza.

Além da coragem e da ousadia, a humanidade é a única espécie a criar crenças como se fosse portador de um cérebro que não aceita explicações ilógicas, inventando respostas que progressivamente são mudadas. Essa capacidade em inventar respostas mesmo que não inteiramente satisfatórias fez do homem um ser criador e destruidor de hipóteses e, entre acertos e erros, mais acertou ainda que muito errou.

Finalmente, o homem é a única espécie que desenvolveu a habilidade em fazer de todos os seus sentidos ferramentas de aprendizagem. Aprendemos quando ouvimos, quando falamos, aprendemos pelo olfato, pelo tato e pelo paladar e, por isso mais que outros, melhor aprendemos. Intempestivo, nunca aceita um saber como completo e, dessa maneira, possui sentidos que desafiam-se entre si para que a aprendizagem seja mais ampla e mais eficiente.

Aqui chegando, chega-se ao centro maior da aprendizagem que, quer aceitemos ou não, é a escola. Ainda que a vida mais nos ensine, é a escola a instituição criada para ensinar e se assim o é, cabe a questão. A escola que temos exalta e aplaude a curiosidade do aluno? Nas aulas, a ousadia da criatividade é premiada? Existem estímulos e projetos sistemáticos para que os alunos sejam levados a construir, testar, destruir e inventar hipóteses? A escola usa todos os sentidos na aprendizagem? Propõe desafios intrigantes e curiosos voltados para a cooperação e a ação? Será que não exalta maior o ouvir que o ver, que o memorizar, que o explorar da intuição e do olfato?

Impossível imaginar as respostas que se dará a essas prosaicas questões. Sejam elas, entretanto, quais forem, pelas mesmas se identificará a qualidade da escola e a verdadeira ação educativa do professor, seu agente mais insigne.

Celso Antunes

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

LITERATURA PORTUGUESA

A Carta de Caminha: História ou ficção? (1)

1. Introdução

Podemos dizer que a Carta (2) do escrivão Pêro Vaz de Caminha é ficção? O que Caminha relata é fruto do seu imaginário (3);ou ele conta fatos verídicos sobre o "achamento" do Brasil? O que é verídico e o que é fingimento num texto? Nós (leitores) podemos mesmo identificar o que é real e o que é imaginado? E isto tem importância em si, ou depende da nossa intenção de leitura? Um leitor que toma a carta de Caminha somente pensando na sua notícia enquanto missiva fruirá a carta da mesma forma daquele outro leitor que busca nela identificações históricas, ou mesmo daquele que se deleita com a perspectiva de uma realidade brasileira vista por olhos estrangeiros?

Aí reside o ponto que quero ressaltar e que, no final das contas, resulta numa discussão sobre gênero e sobre um entendimento da literatura enquanto processo de comunicação que se concretiza na interação entre autor e leitor, por procedimentos de produção textual do autor e procedimentos de compreensão do leitor. Ou seja, um processo intersubjectivo que tem como base um texto, e neste caso, a Carta.

Se a linguagem literária para o próximo milênio requer rapidez, leveza, visibilidade, multiplicidade, exatidão e consistência, como quer Italo Calvino (4), ele certamente faz essa afirmação contextualizado neste momento onde a velocidade e os recursos visuais são palavras de ordem nos processos comunicacionais. O leitor atual, inserido em tal contexto, tem postura que reclama formas de comunicação mais rápida e de maneira mais leve e eficaz. Mas onde está inserida essa questão se aqui tratamos de um texto escrito no século XVI?

Lendo o texto de uma perspectiva comunicacional, não somente o seu autor é levado em conta mas, também, o seu leitor. A proposta é a de não subordinar a condição ficcional de um texto a padrões pré-estabelecidos, quando considerado o processo comunicacional para concretização do sentido. Por isso mesmo, passa pela intenção leitora considerar (ou não) um texto como literário.

Como é óbvio, ao reler um texto de uma época tão anterior, o leitor desse final de milênio o lê contextualizado neste momento em que vive. Ao retomar a história, o leitor redimensiona essa mesma história ao enriquecê-la com a sua leitura, segundo a sua perspectiva. Se o passado passa a ser um futuro que começa, se a história se faz no seu acontecer na possibilidade de novos problemas e novas contribuições para ela, como quer a visão da nova história (5), então, leituras da Carta certidão de nascimento do Brasil, 500 anos depois, certamente trarão novas contribuições para a História, devido às reflexões que necessariamente provocarão sobre o assunto.

Mas alguém que não conhece a História do Brasil poderia pensar no relato como uma produção do imaginário? Dependendo da intenção do leitor, poderá a carta ser lida de uma perspectiva histórica ou de uma perspectiva literária? Segundo a ótica de leitora brasileira, contextualizada às portas do século XXI e geograficamente situada na biosfera do descobrimento, vejo a Carta do escrivão Caminha como história e como ficção. Por esses raciocínios, penso que é possível lê-la como um texto literário e, dessa perspectiva, ressaltarei pontos sinalizados no texto que alicerçam a minha postura de leitora e, consequentemente, o meu argumento. Nestas considerações, não interessa emitir juízos de valor sobre o texto, mas tão somente interpretar o seu sentido. Entendo o processo literário com base na interação e na minha intenção de leitura voltada para os aspectos do texto considerados literários.

Para a discussão que aqui proponho, focarei dois pontos. Um primeiro diz respeito aos procedimentos da produção textual e resulta nas estratégias discursivas do texto e, neste caso, relacionadas ao posicionamento do narrador da Carta. Um segundo, diretamente ligado às questões da linguagem e à expectativa do leitor para o processo da comunicação que, de certa forma, pretende justificar o interesse que desperta, hoje, a leitura da Carta.

1. Procedimentos de produção textual

Quanto aos procedimentos da produção textual, inicialmente um movimento no processo da comunicação se faz quando Caminha, enquanto autor da missiva, assume posturas diferentes quando produz o texto e se faz narrador (6). Nesse caso, fica evidente a condição do narrador em duas visões consideradas como do ver e do parecer (ter impressão de), para utilizar as expressões da própria Carta. A primeira, ligada ao relato, parte do vivenciado, que funciona como referente (7) da história. A segunda, que insinua a ideologia do branco europeu, fundamenta-se nas impressões sobre o vivenciado ou o ouvido. Essas perspectivas que sustentam as questões do imaginário formuladoras do sentido textual, induzem a pensar num sujeito do enunciado (o narrador) e num sujeito da enunciação (o produtor).

Obviamente e já foi dito, o autor da Carta é Pêro Vaz de Caminha, o escrivão da nau capitânia, comandada por Pedro Álvares Cabral, que num dia do ano de 1500 partiu da Torre de Belém, de Lisboa. O posicionamento do narrador ocorre por relatos sobre o que é constatado por Caminha ou impressões sobre o que, por ele, é visto. São relatos do acontecer e das ações dos portugueses e dos indígenas; e são impressões e descrições sobre a nova terra (sua flora, sua fauna, a aparência e os costumes dos seus habitantes), dirigidos a el-rei D. Manuel, o venturoso. O missivista define espaço (terra nova) e tempo: "terça-feira de Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril" (p. 6). A depender da intenção da leitura e das vivências do leitor, esse espaço e esse tempo podem ser vistos como ficcionais (8). Se admitirmos que a história e a ficção têm denominadores comuns (9), entenderemos as razões que induzem a compreender estar na intenção da leitura a decisão de considerar se um texto é história ou ficção.

Mas esse autor, enquanto produtor textual, conta coisas somente vistas e vivenciadas por ele? Se o relato é somente do homem português, temos uma única perspectiva do acontecimento: a do branco. Nesse caso, podemos garantir a sua fidedignidade? A estrutura da carta demonstra um posicionamento produtor que dá margem ao leitor fazer interpretações de níveis de veracidade (10) do fato contado? A perspectiva será mesmo e sempre a de Caminha? Para uma reflexão sobre a questão posta, cabem algumas considerações sobre o enunciado (a carta) e a enunciação (ato da escrita) no que se refere ao sujeito que constrói um discurso (efeito de sentido).

Na abertura da sua carta, Caminha, sabendo-se um narrador dentre muitos outros da frota, sabe também que uma mesma realidade pode ser vista e interpretada de diversas óticas: "Mesmo que o Capitão-mor desta vossa frota e também os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta vossa Terra Nova [...] não deixarei também, de dar disso minha conta" (p. 6). A postura autoral expressada anuncia as possibilidades do narrador e o seu desejo quanto ao relato: "tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade". Na introdução, define o objetivo do seu relato, que se limitará à chegada à nova terra: "do caminho não darei aqui conta [...] o que hei de falar começo e digo" (idem). Diz da sua intenção de escrita – "não hei de por aqui mais que aquilo que vi e me pareceu, nem para aformosear, nem para afear"- que insinua, ainda, a estrutura do texto, entre relato e impressões. Tal posicionamento do narrador passa ao leitor a .idéia das perspectivas do relato em ver e parecer, ou seja, na escrita estruturada nos dois planos referidos ou seja do ver (o acontecendo) e do parece ser (impressão sobre o acontecendo).

No primeiro caso, os movimentos da marinhagem, os comandos do capitão-mor, as ações de embarque e desembarque, as tentativas de comunicação com os indígenas são afirmativas da perspectiva do ver, que referem a história. Nesse caso, os relatos são afirmativos, minuciosamente descritivos, informativos e objetivos: "Mandou armar naquele ilhéu um esperável e dentro dele um altar muito bem arranjado. E ali como todos nós fez dizer a missa" (p. 11).

Mas esse narrador Caminha que não narra somente pelo que diretamente vivenciou e viu, indiretamente relata de fatos vivenciados por outros tripulantes, realizando uma estratégia textual que possibilita correlações semânticas relacionadas ao narrador textual. Um exemplo é o de Nicolau Coelho: "O Capitão mandou no batel, à terra, Nicolau Coelho para ver aquele rio [...] quando o batel chegou à foz do rio estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que cobrisse suas vergonhas. [...] Não pôde ter deles fala nem entendimento que aproveitasse porque o mar quebrava na costa. Apenas lhe deu um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto" (p. 7). Agora, o narrador Caminha conta aquilo que Nicolau Coelho viu e relatou pois refere as ações de um terceiro. Outra vez, quando acompanha o mesmo Nicolau Coelho por ordens do Capitão, inclui-se na pessoa narrativa: "a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos então retos, direitos à praia" (f. 4). Ocorre, por essa estratégia, o processo de narrador dentro de outro narrador (11). Embora a perspectiva textual venha do personagem que narra em primeira pessoa, ocorrem, assim, narradores indiretos, que falam pela boca do escrivão. Dessa forma, ocorre multiplicidade nas vozes que se interpõem à voz de Caminha, fazendo com que o leitor "ouça", pela boca do escrivão, coisas ditas, comandos ou, mesmo, relatos de outros. É diferente a sua postura de narrador quando assume a primeira pessoa do plural, como participante da ação: "Na sexta-feira pela manhã [...] mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela e fomos ao longo da costa com os batéis e os esquifes amarrados pela popa, para norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde estivéssemos, para tomar água e lenha" (F2, grifo meu). Em outro momento diz: "mas nem me pareceu a mim que lhe tinham acatamento nem medo" (F. 17). Fica claro, no entanto, que a ação do escrivão é de observação, sem poder de decisão sobre os acontecimentos.

Numa segunda perspectiva, as sensações, o deslumbramento, as descrições parecem ser as de um estrangeiro extasiado com uma realidade nova em relação às suas vivências. As impressões, ligadas a sentimentos e crenças do escrivão Caminha, insinuam o imaginário do produtor do texto. Insinuam, ainda, uma possível intenção autoral e permitem que o leitor faça inferências de sentido: "Esta missa , segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção" (F. 16). Como poderia o narrador afirmar o sentimento dos indígenas? Evidencia-se a ideologia subjacente no processo da enunciação. Ligado às vivências, está ainda o conhecimento ou desconhecimento da cultura e costumes do povo, que a enunciação faz supor: "E alguns deles se meteram em almadias, duas ou três que aí tinham, as quais não são feitas como as que já vi. Somente são três traves atadas juntas" (F. 18). A nossa jangada era desconhecida dos portugueses.

Ainda, pela impressão que lhe causam os indígenas, o narrador descreve-os: "andam muito bem curados e muito limpos e nisso me parece, ainda mais, que são como aves, ou alimárias monteses [...] E isso me faz presumir que não têm casas nem moradas em que se acolham" [f. 19] Observemos que quando fala das suas impressões Caminha o faz em primeira pessoa do singular, mas quando relata fatos vivenciados juntamente com os outros o faz na primeira do plural: "Nós não vimos, até agora, ainda, nenhumas casas nem maneira delas" [idem] ou: "Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram, então, muitos [...] e estiveram afastados de nós" (f. 19).

Na perspectiva da impressão, além da interpretação segundo as vivências do narrador, está ainda a não certeza quanto ao relatado: "parece-me que viriam este dia à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta [...] Comiam conosco do que lhes dávamos e bebiam, alguns deles, vinho e outros o não podiam beber. Mas parece-me que se lho avezarem que o beberão de boa vontade". A comunicação somente estabelecida pelas ações ou pelo que se interpreta justifica a reiteração do verbo parecer: "Parece-me gente de tanta inocência que se a gente os entendesse e eles a nós, que seriam logo cristãos [...] essa gente é boa e de boa simplicidade" (F. 21). O juízo de valor que emite Caminha em relação aos indígenas (aliás o único da carta) faz parte do nível das impressões, e é reiterado adiante: "a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior quanto a vergonha" (f. 23).

2. A linguagem comunicativa

A comunicação que esperamos em relação à Carta passa por leituras que procurarão a leveza, a rapidez, a visibilidade, a consistência, algumas das categorias sugeridas por Italo Calvino para a linguagem, face à expectativa do leitor deste final de milênio e às características destes tempos de velocidade. Haverá isto na Carta escrita no século XVI? Creio poder apontar alguns desses aspectos, afirmativos das exigências do leitor dessa nossa época para a linguagem.

Se considerarmos dotado de leveza o texto que expressa uma linguagem solta, graciosa, desembaraçada por oposição àquela pesada, cortante, fria, carregada (12), poderemos dizer que o discurso da Carta contém leveza.leveza nas descrições da flora e da fauna, na observação dos costumes, na surpresa e espanto do estrangeiro. Aspectos da escrita contribuem, também, para tal idéia, e exemplo disso são os recursos das rimas e dos trocadilhos como sugerem alguns trechos referentes à descrição do local descoberto: "Águas são muitas e infindas. De tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem" (f. 23). Descrevendo os indígenas, o narrador usa de trocadilhos: "Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho e quartejados, tanto pelos corpos como pelas pernas, que, na verdade assim pareciam bem.[...] Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tingidas e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas que não havia nisso nenhuma vergonha" (F.18)

A rapidez ocorre na agilidade textual, onde datas e espaços não significam retardamento do texto, onde não acontecem digressões e circunlóquios, onde o relato é direto, enxuto e de ações concatenadas: a chegada das naus/ o desembarque/ a primeira missa/ a descrição da terra/ o contato com os indígenas. As descrições sobre a terra e sobre os seus habitantes não imprimem lentidão ao texto, tal a agilidade da linguagem: "Esta terra [...] traz ao longo do mar, em alguma partes grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos, de ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa" (p.20). As imagens, visualizadas na descrição detalhada dos indígenas e no relato dos seus costumes, são nítidas e claras: "Seus cabelos são corredios e andavam tosquiados, de tosquia alta mais do que sobre-pente, de boa grandura e raspados até para cima das orelhas" (p. 8).

A visibilidade envolve os processos imaginativos do produtor textual e do leitor virtual (14). No caso do produtor no ato da escrita, a possível intencionalidade na ficcionalização do imaginário manifesta-se, como bem observa Wolfgang Iser, "nos campos de referência do texto" (1979, 390). A propósito disto, já Calvino questiona "de onde provêm as imagens que chovem na fantasia? (1988, 102). Se as imagens são provenientes do mundo, de outro texto, ou de algum mito (14), na Carta, essa característica da linguagem provém da terra Brasil e evidencia-se na plasticidade das descrições (claras e fortes) sobre a flora e a fauna ou sobre os indígenas: "eles traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam uns espelhos de borracha; e alguns deles traziam três daqueles bicos, da seguinte maneira: um no meio e dois nos lados; e andavam ainda outros quartejados de cores; assim: metade do corpo da própria cor; outra metade de tintura negra, de tom azulado; outros quartejados de xadrez"(...). Ao longo do texto, as imagens do mundo novo repetem-se ampliadas, vistas de ângulos variados, ressaltando de forma especial o colorido: "papagaios vermelhos muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores" (p. 15). A mais forte imagem, porém, está ligada à descrição dos habitantes da terra, à sua simplicidade, ao seu exotismo: "daquelas pinturas quartejados, outros de metade, outros de tanta feição como em panos de armar, e todos com os beiços furados e muitos com ossos neles e deles sem ossos" (p. 15).

A consistência ressalta as constituições de sentido (15) possíveis que fazem o leitor inferir sobre a cultura, os costumes, a ideologia subjacentes no texto. Se considero que a consistência resulta de determinados esquemas de ação que remetem o leitor, a cada leitura, para uma dimensão diversa do sentido, depreendo que um texto será tanto mais consistente quanto mais vazios ele apresentar (16). Nessa acepção, apresentará a Carta alguma consistência? Afora o relato do acontecer e da própria tomada de posse da terra determinante de uma primeira constituição de sentido, há uma outra, consubstancializada no confronto entre as culturas branca e indígena: "eles não lavram nem criam nem há aqui boi nem vaca, nem cabra, nem galinha nem nenhuma outra alimária que seja acostumada ao viver dos homens" (p. 18). Uma outra mais é possível se atentarmos para as diferenças dos costumes insinuados na explicitude dos costumes indígenas e na implicitude do dos brancos: "em cada casa se colhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os achavam e que lhes davam de comer daquela vianda, a saber, muito inhame e outras sementes que na terra há" (p.15). Ainda a ideologia subjacente é determinante de mais uma constituição de sentido: "se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual, praza Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, essa gente é boa e de boa simplicidade e gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar" (f.21). Dessa forma, para além do relato do achamento da Terra de Santa Cruz, processos associativos provocam deslocamentos de sentido para as questões culturais, religiosas e sociais.

Segundo o relato do escrivão, a comunicação entre portugueses e indígenas acontece por gestos e atitudes e não por palavras. É concretizada de acordo com as conveniências dos brancos e, dentre eles, Caminha inclui- se: "Viu, um deles, umas contas de rosário, brancas e acenou que lhas dessem; folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço; depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para terra e então para as contas e para o colar do Capitão, como que dariam ouro por aquilo. Isto entendíamos nós, por assim desejarmos; mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, porque lho não havíamos de dar". Evidentemente o narrador Caminha somente poderia prever ou mesmo relatar as ações relativas aos seus compatriotas, por conhecimento das suas vivências.

Como observa Eco, "os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto" (1990, 17); entendendo assim. depreendo que a intenção da leitura dá o direcionamento de gênero de um texto. Se identificar a história ou a ficção num texto passa por um conhecimento do real por parte do leitor, não poderíamos dizer que o texto é histórico e é ficcional a depender da intenção da leitura? Dessa perspectiva, um leitor que não conheça a sua história, nem quaisquer referências sobre a Carta poderá considerar o texto do escrivão história ou ficção. Nesse caso, eu diria que a Carta de Pêro Vaz de Caminha além de certidão de nascimento do Brasil, como muitos historiadores afirmam, poderá, num tempo, ser considerada, também, o primeiro texto ficcional escrito sobre um imaginário calcado nas terras do Brasil

NOTAS:

(1) Este texto integra o livro Caminhos da Ficção. Salvador: EPIGRAF, 1996, p. 61-76.

(2) Leitura realizada segundo a versão atualizada por Henrique Campos Simões, publicada nesta edição especial da Revista FESPI. A indicação dos trechos citados da Carta remetem à paginação desta referida edição.

(3) O imaginário é fluido e abstrato e efetiva-se no sentido; esse é ambíguo por excelência e "à diferença do imaginário, ele é dotado de forma e à diferença do real, é irreal" (Iser: 1979, 879).

(4) Seis Propostas para o Próximo Milênio: lições americanas,1988.

(5) Jacques Le Goff e Pierre Nora. Faire de L’Histoire. Paris, Gallimard, 1974.

(6) Vale observar a distinção entre autor, produtor e narrador: Falo de autor, somente quando preciso me referir àquele sujeito que vivenciou a história (o escrivão). Considero produtor aquele que tem uma posição a ser preenchida no texto, é somente ‘inferido’ pelo leitor (suj. da enunciação). Entendo como narrador aquele que, identificado ou não com o personagem, é o responsável pelo desenrolar da ação ficcional (suj. do enunciado).

(7) Referente é aqui entendido como alusão à realidade (Brooks: 1983, 74).

(8) Para ilustrar a justificativa, vale estabelecer analogias com outros relatos considerados ficcionais; por exemplo, quem garante que a narrativa de Daniel Defoe sobre Robson Crusoé não poderia ser verídica, a não ser pelo fato de o próprio autor a declarar ficcional?

(9) Ao discutir sobre as aproximações entre a história e a ficção, Linda Hutcheon considera como "denominadores comuns em termos de narrativa: a teleologia, a causalidade, a continuidade" (1987, 123)

(10) Tomo a palavra veracidade na acepção de verdade do fato acontecido, na hipótese de se ler o texto como história. Tomo-a como perspectiva ficcional ligada à verossimilhança, se a Carta for lida como texto literário.

(11) A esse respeito, Umberto Eco fala de texto e paratexto (1994, 26).

(12) Italo Calvino opõe leveza a peso, sem que tal oposição implique critério de valor; a propósito, afirma que: "não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso" (1988, 27)

(13) A visibilidade é aqui considerada como resultante de dois processos imaginativos, um relacionado com a "idéia de imaginação como participação na verdade do mundo" (Calvino,: 1988, 104), ligado à produção do texto; outro, que envolve as visões obtidas do texto pelo leitor.

(14) Simões, M.L.N. As Razões do Imaginário. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/ EDITUS, 1998.

(15) Entendidas como níveis de interpretação, relacionados com a "provável intenção do autor e as possíveis intenções dos leitores, uma vez que elas sugerem o sentido do texto que é concretizador do imaginário" (Simões: 1998, 24).

(16) Sobre vazios, diz W. Iser que eles "derivam da indeterminação do texto [e] não estão apenas no repertório, mas também nas estratégias" (1976, 106-8).


Referências Bibliográficas:

Calvino, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: lições americanas, trad. de Ivo Barroso. São Paulo, Schwarcz, [1988] 1991.

Eco, Umberto. Os Limites da Interpretação, José Colaço Barreiros, Lisboa, Difel, 1990.

Eco, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, trad.: Hildegard Feist, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1994.

Gumbrecht, Hans Ulrich. "Sobre os Interesses Cognitivos, Terminologia Básica e Métodos de uma Ciência da Literatura Fundada na Teoria da Ação", trad.de Heidrun Krieger e Luiz Costa Lima, revisão de Peter Naumann. in: Lima, Luiz Costa (ed.) A Literatura e o Leitor. Textos de Estética da Recepção, Rio de Janeiro, Paz e Terra, [ 1977] 1979.

Le Goff, Jacques; Nora, Pierre (Dir.). Présentation, in: Faire de L'Histoire. Paris Gallimard. Vol. 1: Nouveau Problèmes, 1974.

Hutcheon, Linda. A Poética do Pós-Modernismo. Trad : Ricardo Cruz, Rio de Janeiro, Imago, 1988.

LITERATURA

OPERADORES ARGUMENTATIVOS

NEORREALISMO PORTUGUÊS

O Neorealismo é uma escola que elege para tema fundamental da obra literária assuntos relacionados com o condicionalismo sócio-económico dos povos e analisa a luta de classes que ele implica, visando, na linha ideológica do marxismo, contribuir para o desaparecimento da exploração do homem.

Como se conclui da definição dada, o Neo-Realismo baseia-se na interpretação dinâmica do materialismo dialéctico. Para os marxistas, a cultura, a arte, a religião, o direito os costumes, o próprio conceito de natureza humana não passam de super-estruturas das infra-estruturas econômicas. Ora, como as realidades econômica se vão transformando pela luta de classes, segue-se logicamente que as super-estruturas delas derivadas e nelas assentes se têm de transformar também e, de facto, se transformam. Daqui se deduz que a cultura, a arte, as crenças religiosas, as leis, os costumes, tudo o que o homem em determinado momento pensa de si (o que, segundo os marxistas, constitui a sua natureza) não são realidades imutáveis, mas realidades em contínuo evoluir. É o homem que se faz e, ao fazer-se, faz a história.

Diante desta evolução dialéctica, o literato pode assumir duas atitudes. A primeira é aceitar o mundo tal qual ele é, conformar-se com ele sem combate, e então a obra literária não passará de uma recriação de super-estruturas aéreas e efêmeras, reflexo esclerosado de realidades que tendem a desaparecer. A segunda é apreender o homem na sua totalidade, com implicações não só biológicas e psicológicas mas também sócio-económicas. Neste caso, como as realidades sócio-económicas evoluem pela dinâmica da luta de classes, o literato integrar-se-á automáticamente no evoluir da história, fomentando-o. Só esta atitude é válida para os marxistas. Na verdade, a missão do escritor, depois de estar na posse das leis da evolução dialéctica da vida da humanidade, é tornar conhecidas essas leis, com o que apressará o movimento evolutivo através do qual o homem se faz pela história, fazendo a história por sua vez. Foi isto que Idanov quis dizer, no Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos (1934), ao afirmar que incumbe ao Realismo socialista “a tarefa de transformação ideológica e de educação dos trabalhadores no espírito do socialismo.”

Sendo isto assim, o artista, que se transforma numa força apreciável, terá de comprometer a obra literária no evoluir histórico. Porá de parte a “arte pela arte” e criará uma literatura de tese. Nessa literatura, o tema fundamental será a luta de classes, a luta entre exploradores e explorados, corporizada numa espécie de dicotomia maniqueísta em que o capitalista e o burguês representam todo o mal humano e em que o proletário simboliza a defesa da verdade histórica e da justiça. O escritor neo-realista combaterá evidentemente ao lado do proletariado contra o capitalismo e a burguesia que o escravizam, contradizendo na teoria e na prática a tese do fatalismo sociológico da pobreza.

Implantação em Portugal do Neo-realismo

Entre nós, desde o século XIX, o romance insistia sobretudo na análise do individuo não caracterizado como elemento de classe. Nas primeiras décadas do século XX, persiste ainda a mesma técnica narrativa tradicional: academicismo, culto do pitoresco histórico e regional, primado do estilo como elemento estético. Baldados os esforços de modernidade de Raul Brandão e Almada Negreiros, o movimento da Presença arredou-se um pouco da linha tradicional, mas ficou-se pela análise psicológica de indivíduos neutros, sem consciência de classe.

No primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos em 1934, Gorki lançou a palavra de ordem do que chamou realismo social. Por essa altura, em países ocidentais como América do Norte e o Brasil, muitos romancistas agitavam nas suas obras assuntos socio-económicos numa linguagem crua. Todo o mundo se interessou pelo novo tipo de literatura, sobretudo quando as primeiras conquistas do socialismo foram esmagadas pelo imperialismo financeiro que, sob o nome eufônico de “nacionalismo”, impôs em vários países do mundo regimes militares ditatoriais.

Também em Portugal se começou então a notar certo interesse pelo realismo social. A nova corrente literária, ainda que embrionariamente, ia-se manifestando em artigos que apareceram em revistas criadas por alturas do citado Congresso dos Escritores Soviéticos em 1934; Gleba (Lisboa, 1934), Outro Ritmo (Porto, 1934), Agora (Coimbra, 1934), Gládio (1935) e também no “órgão do Instituto de Cultura Socialista” Pensamento (Porto, 1930).

Coimbra franqueava nessa época as portas da Universidade a estudantes pequeno-burgueses, alguns deles oriundo de meios humildes. Desejosos de combater a opressão, começaram por adoptar o combativismo da Geração de 70, dos coriféus da primeira República e dos homens da “Seara Nova”. Ouviam com sofreguidão emissoras estrangeiras, folheavam revistas fornecidas por embaixadas, desencadeavam movimentos cívicos e estudantis, logo reprimidos. E liam o novo romance americano de Hemingway, John dos Passos, Steinbeck, e sobretudo os autores brasileiros Jorge Amado, Armando Fontes, Lins de Rego, Graciliano Ramos.

Os jovens neo-realistas portugueses contestaram logo de início o socialismo utópico da Geração de 70 ou qualquer outro tipo de humanitarismo laico. Contraditoriamente aos realistas burgueses do século XIX, inclinaram-se mais ou menos abertamente pra o socialismo marxista. Mas, nas circunstâncias políticas da época, não lhes foi possível uma assimilação perfeita do materialismo dialéctico. A todos faltava uma solida formação filosófico-científica, não obstante alguns terem acesso a obras clássicas na matéria, que lhes chegavam por via francesa: de George Friedmann (La Crise Du Progrès), de Henri Lefêcbre e Norbert Gutermann (La Conscience Mystifiée), de Aragon (os romances do ciclo“Le Monde Réel”) e também de Plekanov (A Arte e a Vida Social).

Foi por isso talvez que os pioneiros da escola, nos seus começos e até 1950, se entretiveram sobretudo com a polémica que ficou conhecida pelo nome de “batalha pelo conteúdo contra a arte pela arte”. O alvo dos seus ataques foram os escritores da “Presença”, como se sabe, totalmente divorciados dos temas políticas e sociais. Na esteira de afirmações isoladas de Jorge Amado e Alves Redol, chegaram mesmo a advogar para o livro neo-realista a categoria de “documento” de preferência à categoria de “literatura”. Contra o desprezo da forma no estilo neo-realista cedo se insurgiria Mário Dionísio, decretando-se mais tarde que o descuido da “literariedade” não podia constituir de forma alguma um preceito do Neo-Realismo.

A polémica a que aludimos, envolvendo do lado presencista José Régio, Casais Monteiro e outros, foi sustentada por Alves Redol, Gomes Ferreira, Mando Martins, António Ramos de Almeida, Afonso Ribeiro, Álvaro Cunhal, Mário Dionísio. Escreviam nas revistas do Sol Nascente (Porto, 1937-1940), e nas citadas Pensamento, Gleba, Outro Ritmo, Agora, Cládio, Seara Nova, etc.

Como a censura política, ciosa e atenta, obstava à divulgação do Neo-Realismo através da informação periódica, os coriféus da escola acharam bem optar pela obra literária: poesia, conto, novela, romance. Lançaram-se nesse campo. Aparecem então iniciativas editoriais aglutinantes do movimento: o “Novo Cancioneiro” (Coimbra, 1941-1944) e “Cadernos Azuis” (Porto, 1941); surgem logo a seguir obras narrativas. Com bastantes imperfeições técnicas geradas por tantas contrariedades, o Neo-Realismo acabou, apesar de tudo, por se implantar na nossa literatura.

Costuma indicar-se como início da escola em Portugal o ano de 1940 (mais concretamente Dezembro de 1939), data em que apareceu o romance de Alves Redol Gaibéus. Mas, omitindo o nome de Ferreira de Castro, não devemos esquecer que indícios claros de Neo-Realismo aparecem já em alguns poemas de Mário Dionísio publicados em Sol Nascente (1937), nos contos de Afonso Ribeiro Ilusão da Morte (1938), nos livros poéticos de António Ramos de Almeida Sinal de Alarme (1938) e principalmente Sinfonia de Guerra (1939, e em poesias dispersas de Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado, Álvaro Feijó, Políbio Gomes dos Santos, João José Cochofel, aparecidas em 1939 nas revistas Sol Nascente, O Diabo, Seara Nova, Altitude, etc.

Por alturas chamada “Guerra Fria” (anos 50), o Neo-Realismo foi vítima de convulsões internas que o debilitaram. Dificuldades em congraçar o marxismo com a literatura de vanguarda e discussões antigas de fundo e forma levaram os Neo-Realistas a um esgrimir contraproducente nas revistas Mundo Literário (anos 1946-1947), Ler (ano 1952), e Árvore (anos 1951-1953). Muitos escritores evoluem então para o existencialismo, enquanto outros que, em oposição ao Neo-Realismo, haviam continuado agarrados ao psicologismo presencista, tentam o imaginismo poético e o surrealismo. Mas a literatura de intervenção e empenhamento social, mais ou menos ataviada de formalismos neo-realistas, tem encontrado nas últimas décadas os seus apaniguados, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo que crescem os estudos monográficos e análises gerais da história pátria baseados numa focagem de teor marxista das infra-estruturas econômico-sociais.

O romance neo-realista português

Vamos destacar que a acção do romance neo-realista normalmente é aberta, sem progresso dramático linear, composta em geral por uma acumulação de factos, de quadros panorâmicos, só ligados entre si pelo narrador e pela homogeneidade de situações que são muitas vezes símbolos. Desta forma, a intriga de tipo tradicional ou não existe ou corre diluída em fragmentações do gênero “reportagem”. E, a princípio, muitas obras neo-realistas nem sequer conseguiam ultrapassar um vulgar nível panfletário.

As personagens são quase sempre colectivas, grupos antagônicos constituídos, de um lado, por representantes do capital e, de outro, por conjuntos de trabalhadores agrícolas e (mais raramente) de operários esmagados pela ganância de uma minoria dirigente, localizados em zonas bem determinadas. A estreita localização destes grupos trouxe para o neo-realismo português uma característica que não abona: o regionalismo alentejano.

Estas personagens não figuram na acção como caracteres psicologicamente estudados mas apenas como tipos de uma classe. Se há um protagonista que merece destaque, é por ser o mais atingido entre a multidão ou por reflectir as reacções do todo. Por isso, o romance neo-realista abandona a personagem vista nos salões através da psicologia tradicional, para descer à personagem vista nos salões através da psicologia tradicional, para descer à personagem vulgar do campo ou da fábrica, conhecida por processos behavioristas, anotadores de um comportamento externo que se reduz a gestos de protesto social e também a atitudes de revolta contra o fatalismo do meio geográfico. Diante dos factores materiais e das forças sociais que as bloqueiam, as personagens neo-realistas não esboçam qualquer atitude de espiritualidade.

O autor observa as situações com neutralidade pelo menos aparente, coloca os protagonistas no ambiente próprio, deixa-os agir e viver uma vida muito real; faz depois “jornalismo”, reportagem. Selecciona, no entanto, as situações a analisar e, quando calha, põe-se a interpretar os factos em função do fim que tem em vista. Com efeito, os neo-realistas são radicalmente objectivos, recriando a realidade social. Mas o subjectivismo não lhes é de todo estranho, pois não se limitam a recriar a realidade: orientam-na para transformações profundas com que sonham e em que estão empenhados.

Minimizam os neo-realistas o cuidado da forma (que julgam encobrir ou pelo menos esfumar a verdade do romance) e, uma vez ou outra, no afã de retratar a realidade do modo mais simples possível, chegam a descurar as regras gramaticais. Foi neste sentido que a polémica com os presencistas orientou inicialmente a estética da escola. Contra este desprezo da forma insurgiu-se, como dissemos já, Mário Dionísio.

O autor neo-realista gosta de pôr na boca das personagens a linguagem popular regional, como se a tivesse gravado do natural em fita magnética e a repetisse. Leva o diálogo muitas vezes a assumir funções narrativas. Emprega frases curtas, bem adaptadas ao pensamento conciso que o domina. Com tendência para a substantivação do real, usa moderadamente o adjectivo.

domingo, 21 de fevereiro de 2010


Quando falares, cuida para que tuas palabras sejam melhores do que o teu silêncio.

Ditado indiano.

Incertos

A indecisão paira sobre o ser,
somos assim,
indecisos e sem rumo...
mas sabemos,
onde não queremos atracar!
sem porto seguro
navegamos,
fazemos da vida
nosso mar !


Gerson Rodrigues

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Simplesmente

Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

Vinícius de Moraes

Dialética


É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Vinícius de Moraes

Soneto do Amigo



Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Informática e poder

Informática e poder: uma leitura de Foucault

Marcelo Araujo Franco

I

O pensamento de Michel Foucault pareceu-me um dos mais importantes para a compreensão de saberes que orientam a atualização dos mecanismos históricos de sujeição dos indivíduos nas transformações que as sociedades vivem neste final de século.

Em Vigiar e Punir, Foucault (1987) define os mecanismos de sujeição do corpo como uma tecnologia. Nesta obra o filósofo-historiador analisa uma história política do corpo, com o objetivo de mostrar que o corpo está sempre sujeito à uma utilização econômica que torna possível seu funcionamento como força de trabalho. Há um saber sobre o corpo e um controle sobre suas forças. Estes constituem o que ele chama de tecnologia política do corpo. (Foucault, 1987: 26 )

Meu objetivo é fazer uma primeira aproximação a essa questão, mostrando como as tecnologias políticas do corpo estão articuladas com novos dispositivos de controle. É de conhecimento público a importância do desenvolvimento da área tecnológica de informática e comunicação. Doravante tratarei o conjunto dessas tecnologias apenas por informática. O uso da informática se disseminou em todos tipos de atividades nas últimas décadas, ocorrendo uma grande aceleração desse uso nos anos noventa. A hipótese que desejo investigar é que essa quase onipresença da informática também levou à criação de novos dispositivos de controle, no sentido apontado por Foucault.

Este trabalho é um esforço para interpretar a discursividade própria à informática, tentando utilizar a mesma metodologia que Foucault usou para analisar os mecanismos disciplinares e o surgimento das instituições que operavam estes mecanismos em outras épocas. Tentarei apontar alguns mecanismos de sujeição, e por isso de poder, tornados operacionais pelas tecnologias contemporâneas de informação.

O desdobramento dessa investigação poderá analisar e apresentar saberes que estão sendo desqualificados e dominados pelo discurso científico, universal e uniformizante que ocorre na informática.

II

Contemporâneos de Foucault também realizaram análises do poder. Deleuze é um filósofo muito próximo de Foucault por inúmeros motivos, inclusive com relação aos temas e aos métodos. Assim, nos escritos de Deleuze aparece continuamente a problemática dos mecanismos de controle dos indivíduos:

Tínhamos também, possivelmente uma concepção comum de filosofia. Não possuíamos o gosto pelas abstrações, o Uno, o Todo, a Razão, o Sujeito. Nossa tarefa era analisar estados mistos, agenciamentos, aquilo que Foucault chamava de dispositivos. Era preciso não remontar os pontos, mas seguir e desemaranhar as linhas: uma cartografia, que implicava numa microanálise (o que Foucault chamava de microfísica do poder e Guattari, micropolítica do desejo). (Deleuze, 1992: 109)

Deleuze continuou a investigar a questão do poder depois da morte de Foucault. Analisando o que acontecia com o desenvolvimento técnico na década de oitenta, Deleuze afirmou que as novas tecnologias de informação que surgiam eram na verdade novos mecanismos de controle. (Deleuze, 1999: 5-6). As máquinas propriamente ditas "não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos dos quais elas são apenas uma parte" (Deleuze, 1992: 216).

Os mecanismos de uma nova tecnologia política do corpo, apontados por Deleuze, aparecem em algumas entrevistas transcritas no seu livro Conversações. Neste livro, Deleuze mostra como Foucault havia situado as sociedades disciplinares nós séculos XVIII e XIX, atingindo seu apogeu no início do século XX. Estas haviam sucedido as sociedades de soberania.

Foucault também sabia da brevidade desse modelo ... As disciplinas, também por sua vez conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser. ... São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades de controle. (Deleuze, 1992: 219-220)

É possível seguir os passos de Foucault para fazer a investigação de acontecimentos tão recentes? Ou seja, fazer uma genealogia do presente? Vários problemas se colocam à essa pergunta. Um deles é que não estou preparado para respondê-la, pois meu conhecimento de Foucault não é suficiente nem para eu saber localizar escritos do autor que trate desta questão, dentro do tempo delimitado para a realização deste trabalho. O segundo é que o assunto investigado está relativamente distante daquele estudado no curso. Neste lemos vários textos de Foucault do livro organizado por Roberto Machado, Em "Genealogia e Poder" (Foucault, 1984). Foucault analisa que algumas mudanças que ocorreram naqueles anos com a crítica, gerando um deslocamento do caráter das investigações, o que produziu o que ele chama de insurreição dos saberes dominados. Ele entendia os saberes dominados como duas coisas:

Os conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais" e "uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados. (Foucault, 1984: 170)

Foucault procura fazer a constituição e ativação desses saberes históricos, através de uma tática que ele chama de genealogia. Esta é:

O acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais. ... Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretende depurá-los, hieraquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome de uma ciência detida por alguns. (Foucault, 1984: 171)

Mantendo ainda a pergunta: é legítimo utilizar uma metodologia elaborada para pesquisas históricas para desvelar acontecimentos hodiernos? Isto deve ser investigado antes de tudo, porque uma das características dos saberes elaborados no entremeio das novas tecnologias é que eles são voláteis, efêmeros e não estão sedimentados. Há uma constante aceleração na produção de conhecimentos e técnicas, os quais vão ficando imediatamente obsoletos à medida que os novos vão surgindo. Mesmo esses tipos de dispositivos podem ser identificados, desvelados e compreendidos a partir da tática da genealogia? Para tentar responder a isso recorro novamente a Deleuze que afirma:

A arqueologia, a genealogia, são igualmente uma genealogia. A arqueologia não é necessariamente o passado. Há uma arqueologia do presente; de certa maneira ela está sempre no presente. A arqueologia é o arquivo, e o arquivo tem duas partes: audio-visual. A lição de gramática e a lição das coisas. Não se trata das palavras e das coisas. (o livro de Foucault só tem esse nome por ironia). É preciso extrair as coisas para extrair delas as visibilidades. E a visibilidade de uma época é o regime de luz, e as cintilações, os reflexos, os clarões que se produzem no contato da luz com as coisas. Do mesmo modo é preciso rachar as palavras ou as frases para delas extrair os enunciados. E o enunciável numa época é o regime da linguagem, e as variações inerentes pelas quais ele não cessa de passar, saltando de um sistema homogêneo a outro (a língua está sempre em desequilíbrio) O grande princípio histórico de Foucault é: toda formação histórica diz tudo o que pode dizer, e vê tudo que pode ver. (Deleuze, 1992: 120-121)

A genealogia do presente parece então possível. Como e onde localizar então os acontecimentos ligados à tecnologia que eu cite?. Como torná-los visíveis? Como afirmei, estes acontecimentos se esvanecem carregados pelo presente. Entretanto pressentimos que novas forças operam as novas práticas e relações de poder, ainda que persistam as disciplinas ou as adaptações das disciplinas. Ainda não podemos ver instituições formais sendo estabelecidas, como no passado foram criados os hospitais e as prisões. Os novos dispositivos possuem apenas uma parcela mínima de materialidade. Não necessitam de construções específicas e dedicadas. As tecnologias de informação estão sendo instaladas no interior de todos os espaços preexistentes a elas.

Os novos mecanismos de controle estão sendo estabelecidos através da junção da ciência e da técnica, junção que forma o saber qualificado e dominante do fim do século: tecno-ciências. Além disso, saber qualificado hoje também significa reconhecido pelo mercado. No entanto, como Foucault (1984: 174-175) procurou mostrar, a análise do poder não pode ser deduzida unicamente da economia. Por isso não seguirei esse caminho.

Dessa forma a análise do que é o poder dessas novas forças deve ser genealógica. Para Foucault, a arqueologia é o método próprio à análise da genealogia da discursividade local (no caso o discurso da tecno-ciência informática). Sendo "a genealogia a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem dessa discursividade". (Foucault, 1984: 173)

A seguir tentarei fazer um exercício de análise da discursividade local da informática, através textos próprios desta área técnica, buscando extrair de suas palavras seus enunciados.

III

A Informática possui um conjunto de linguagens inerente a essa tecnologia. São linguagens que possuem os mais variados tipos de signos. Nas linguagens de programação constitutivas da informática são usadas palavras (geralmente da língua inglesa) que não remetem a nenhuma coisa do mundo natural. São palavras referentes às funções internas da linguagem. Estas funções não são apenas funções matemáticas, pois podem comandar ações eletro-mecânicas dentro da própria máquina ou em outros objetos que de alguma forma se comunicam com a máquina.

Um discurso no interior do campo científico ou operacional da informática é uma linguagem cifrada para um leitor leigo na área, pois não se refere a nada familiar a ele. Para o leigo, muitas vezes não é possível saber sobre o que, para que, e para quem o texto está falando. Além de usar as linguagens de programação, os técnicos de informática possuem uma linguagem descritiva própria à esta tecnologia (jargão), que utiliza muitas palavras da linguagem interna da máquina, fazendo com que a escrita dos técnicos pareça muitas vezes uma linguagem sem "vida" e sem significado, enfim, neutra. O parágrafo a seguir dá uma demonstração deste tipo de linguagem:

Uma das características principais das linguagens para programação em lógica é sua semântica declarativa. A idéia por trás dessa semântica é que existe uma maneira de determinar o significado de cada declaração que não depende de como a declaração seria usada para resolver o problema. Isto é, o significado determina uma dada proposição num programa é determinado a partir da própria proposição, enquanto que, em Iinguagens imperativas a semântica de um comando requer informações que não estão contidas ou não estão explicitadas no comando. Por exemplo o conhecimento das regras de escopo para as variáveis é necessário para se entender o significado de determinado comando em um programa escrito numa linguagem procedural. (Valente, 1993: 52)

O texto acima se refere a um modelo de linguagem de programação de computadores. Mesmo deslocado de seu contexto, acredito que ele deve ser de difícil entendimento para os leitores sem formação em informática. Menos ainda para os pedagogos e professores a quem o livro se destina.

Uma importante característica das tecnologias de informação é que suas linguagens se referem às funções internas, ou seja, a si mesmas. São palavras que remetem a apenas um exato procedimento ou definição. Ao contrário da língua, cujas palavras são polissêmicas, o vocabulário técnico parece ter um único sentido. Seriam realmente linguagens neutras? Isto remete também à questão da neutralidade da técnica. A seguir procurarei mostrar que essa discursividade não é neutra mas tem uma função.

À primeira vista alguns textos técnicos podem conseguir representar uma característica de neutralidade, mas a não neutralidade desses dispositivos aparece mais claramente em textos de divulgação desta mesma técnica, como o seguinte:

Os computadores antigos eram impraticáveis. Ocupavam muito espaço, custavam uma pequena fortuna e não executavam muitas funções úteis. Assim como os dinossauros – grandes, pesados e não muito brilhantes – os computadores eram mais adequados à ficção científica do que a lares e escritórios. ... Todos os computadores necessitam de hardware e software para funcionar. O hardware fornece a base e o software, a informação. Imagine o software como o cérebro e o hardware como os músculos. (Weixel, 1995: 13)

No texto acima a áurea de neutralidade e unicidade de significado se perde. As palavras que descrevem o funcionamento do computador podem parecer ingenuamente informativas. No entanto, levam à distintas interpretações e ao desvelamento de sentidos encobertos.

A história da técnica permite identificar também flagrantes incorreções no texto. Para isso, veja Breton (1991). Os antigos computadores não eram impraticáveis, nem inúteis, muito menos peças de ficção científica. Os primeiros computadores surgiram depois da Segunda Guerra Mundial, como conseqüência de projetos ousados e muito investimento. Eram perfeitamente funcionais na sua época, permitindo resolver problemas teóricos e práticos insolúveis até então, devido a quantidade de cálculos envolvidos. Entre esses cálculos estavam os necessários para definir a trajetória de uma aeronave em uma futura viagem para a lua. Assim como a ciência daquela época era naturalmente considerada a mais evoluída, o maior refinamento alcançado no conhecimento até então, aqueles computadores vistos como "dinossauros" no texto anterior, eram as mais complexas máquinas construídas até então pelo homem. Da mesma forma, as técnicas e as ciências de cada uma das décadas seguintes também eram considerados os saberes mais qualificados e verdadeiros da época. Estes saberes são tidos como obsoletos e considerados inaceitáveis para os padrões tecnológicos de hoje.

O discurso da obsolescência produz um novo tipo de controle sobre os indivíduos que se sentem muitas vezes incompetentes em relação à velocidade de atualização necessária para estarem preparados para se comunicar para trabalhar com as máquinas. Como os indivíduos não podem se transformar com a mesma velocidade das máquinas de informação contemporâneas, eles sofrem um novo tipo de sujeição, podendo ser controlados através delas.

A comparação entre o computador e o homem que aparece no texto remete à questão da relação homem-máquina, um dos pontos centrais dos dispositivos que são objetos desta análise. A relação homem-máquina vem mudando muito desde a época do surgimento dos primeiros computadores.

O computador transformou a definição de máquina, que era vista até então um artefato mecânico para um dispositivo que trabalha com informação. O computador é o exemplo típico dessas novas máquinas que utilizam pouca energia e muita informação. A capacidade de manipulação de informação é que criou uma analogia do computador e o cérebro. No entanto essa analogia é apenas uma metáfora, pois o funcionamento do cérebro ainda é muito pouco conhecido e certamente bem distinto do computador. O computador é digital e o cérebro analógico. Essa metáfora é citada em no texto anterior de divulgação da informática como algo inocentemente didático. No entanto, importantes saberes que se constituem nos nossos dias nascem exatamente desta metáfora, como por exemplo, a Ciência Cognitiva e a Neurociência (Sfez, 1994).

Os saberes tecnológicos realizam discursos apologéticos da técnica e se apregoam com uma promessa de redenção do esforço e do sofrimento humano. Depois a Internet os computadores foram apresentada dessa forma:

A Internet é um conjunto de centenas de redes de computadores que servem a milhões de pessoas em todo o mundo. ... Seus usuários são imensamente diversificados – educadores, bibliotecários, empresários e aficionados por computador, só para enumerar alguns tipos. E isso se deve a inúmeras razões, que vão desde a simples comunicação interpessoal ao acesso a informações e recursos de valor inestimável. Para ter uma idéia do que a Internet é capaz de oferecer, imagine um sistema rodoviário que diminui em horas a distância entre duas cidades. Ou uma biblioteca que poderia ser consultada a qualquer hora do dia ou da noite, com milhões de livros e recursos disponíveis. Ou quem sabe, uma festa ininterrupta, com pessoas para recebê-lo a qualquer momento. (Tracy e Ryer, 1994: I)

Na verdade, antes de ser a festa sugerida, as novas tecnologias também significam um processo de rompimento com o modo de produção estabelecido, cujas bases estão no uso da força de trabalho humana. A destruição do trabalho se dá com o uso intensivo de informática na produção que se torna cada vez mais automatizada. E o homem é liberado algo que não está preparado, tanto por não possuir mais as formas tradicionais de renda, como por não saber viver sem um tipo de trabalho que lhe dava sentido na vida.

Toda nova tecnologia cria seus excluídos. (Lévy, 1999: 237). Com essa afirmação, o filósofo francês não está atacando a tecnologia. Ele quer lembrar que antes dos telefones não haviam pessoas sem telefone, da mesma forma que antes da invenção da técnica da escrita não havia analfabetos. A escrita gerou e gera até hoje milhões de excluídos, mas nunca foi considerada um flagelo. Segundo Lévy (1999), o fato de haver analfabetos ou pessoas sem telefone, não nos leva a condenar a escrita ou as telecomunicações. Porque seria diferente com os computadores?

O fato é que a interligação dos computadores acabou formando a rede Internet, processo que cresceu geometricamente a partir de meados desta década. A soma dessa rede e dos saberes que se estabelecem a partir dela constitui um novo dispositivo de poder, à medida que qualquer comunicação qualificada passa a acontecer nesse meio e nas linguagens compatíveis com a rede. Isso não é novo: há vinte anos atrás Jean-Françoes Lyotard fazia a previsão que aqueles saberes que se dão fora das linguagens do computador seriam desqualificados e abandonados. (Lyotard, 1993: 4).

Os novos saberes da tecnociência soam também como a possibilidade de organizar os espaços privados e públicos - que por sinal estão em processo de desagregação - oferecendo novas formas de controle. Como procurei mostrar, possuem ainda um regime de linguagem que esconde nas suas palavras a presença dessas novas formas de controle. É no interior desses discursos que devemos procurar o que está sendo enunciado com relação a essas novas forças.

O projeto da casa a ser construída pelo maior empresário da área de informática do mundo possui um sistema de total acompanhamento de quem está dentro. Ele vê esse sistema como a produção de comodidades. Mas também pode-se ler na descrição do projeto um sistema de controle que foi apenas imaginado na ficção científica mais elaborada.

Quando parar seu carro na área semicircular em frente à porta principal, verá pouco da casa. É porque você vai estar entrando pelo andar de cima. Ao entrar, receberá um crachá eletrônico para prender na roupa. Esse crachá vai conectá-lo aos serviços eletrônicos da casa.... O crachá eletrônico que você vai usar dirá à casa quem você é e onde se encontra. A casa vai usar tais informações para tentar satisfazer e até prever suas necessidades - tudo da maneira menos invasiva possível. ... Algum dia, no lugar do crachá, talvez seja possível ser identificado à partir de uma câmera com capacidade para reconhecimento de imagem.

Uma casa que monitora seus ocupantes de forma a satisfazer suas necessidades específicas alia duas tradições. A primeira é a do serviço não invasivo, a outra é que um objeto que carregamos nos dá a prerrogativa de determinado tratamento. Você já se acostumou com a idéia de que um objeto pode lhe dar uma autenticação. Ela pode informar as pessoas ou as máquinas de que você tem permissão para fazer algo, como abrir uma porta trancada, embarcar num avião ou usar uma linha de crédito específico. ...

A casa será equipada para registrar estatísticas das operações de todos os sistemas, de forma que poderemos analisas essa informação e regulá-los. Quando estivermos todos na estrada da informação [a super rede que sucederá a Internet], o mesmo tipo de equipamento será usado para contar e monitorar todo tipo de coisa, e as estatísticas serão usadas para quem se interessar. (Gates, 1995: 269-277).

Há importantes pensadores contemporâneos que analizam a problemática da informática. Os conhecidos críticos franceses Jean Baudrillard e Paul Virilio vêm a informática como um dos grandes males que infringiram a sociedade neste fim de século. Mais moderado, Arlindo Machado é um crítico brasileiro que analisa o problema sem ser um tecnófobo como os primeiros.

Em "Máquinas de Vigiar", Arlindo Machado analisa os dispositivos eletrônicos de vigilância, a partir do projeto do Panóptico de Benthan, descrito por Foucault. Segundo ele, "esses dispositivos generalizam por toda a sociedade métodos de coerção nascidos no interior de presídios, ou antes utilizados apenas localizadamente, na investigação ou repressão policial". (Machado, 1993: 224).

Neste artigo, Arlindo Machado centra-se principalmente na investigação da vigilância pela visão, como por exemplo a proliferação das câmeras de televisão, analisando menos o potencial da informática nessa tarefa, exceto em algumas rápidas passagens. Essa análise se diferencia muito da compreensão que o controle hoje opera muito mais pelas informações, que como acredita Deleuze, são mais palavras de ordem que orientam o indivíduo, do que os sistemas de vigilância baseados na visão. Enquanto nos sistemas de vigilância baseados na visão o mais importante é o indivíduo se sentir vigiado, nos sistemas de controle por informação o indivíduo não sabe que é controlado.

Há hoje uma grande pressão para que as pessoas se instruam de forma continuada nas suas casas e nos seus locais de trabalho. Nas universidades ocorre uma apologia dessa educação continuada, que permitiria aumentar o número de alunos nessas instituições e os atualizariam para o mercado de trabalho. À primeira vista isso parece bastante meritório pois a educação continuada poderia levar a educação àquelas pessoas que, afastados dos centros onde estão as melhores escolas e universidades, necessitam se aprimorar para manter-se atualizadas para o trabalho. No entanto, outra é a visão de Deleuze:

Assim como a empresa substituiu a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. ...

Muitos jovens pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira. (Deleuze, 1992: 221 2 226).

Em consonância com a educação a distância, há também um grande esforço nas universidades para o estabelecimento da prática de cursos a distância. O interesse na educação a distância foi reforçado à partir das facilidades trazidas pela computação e principalmente pela Internet. O discurso advindo da informática passa a permear também essa forma de educação.

Um ambiente informatizado de educação a distância permite um controle muito grande sobre o aluno. Este pode entrar nesse ambiente na hora que quiser, com o uso do seu computador e do modem, através da linha telefônica. Liberdade de horário para aprender que seria louvável, caso não existisse um formidável sistema de controle. O aluno é monitorado no exato momento que entra no sistema e tudo que ele faz é registrado até sua saída. Esse tipo de sistema guarda todas as informações e permite gerar estatísticas e gráficos sobre o comportamento e a performance do aluno, inclusive as eventuais comunicações com os colegas e o professor. Nem Foucault nem Deleuze puderam conhecer tamanha capacidade operacional de vigilância e controle.

IV

Uma análise destes novos dispositivos mostrarão que eles não têm uma força onipresente e onipotente, não controlam todos os espaços nem sujeitam todos os corpos, como é a idéia do panoptismo, estudada por Foucault. Pelo contrário, da mesma forma que Foucault mostrou que em todas as épocas existiram outros saberes paralelos aos saberes tidos como qualificados, existem também hoje saberes que estão sendo "sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais" (Foucault, 1984: 170). Hoje todos nós incluídos no sistema usarmos crachás e cartões eletrônicos que, como afirma Deleuze, são uma espécie de coleira eletrônica. No entanto, é possível notar que nos entremeios, nos subterrâneos dessas tecnologias, fervilham forças de resistência que produzem "uma série de saberes são qualificados como não competentes ou insuficientes elaborados" (Foucault, 1984: 170), ou que utilizam os saberes competentes de uma forma não esperada ou desejada.

Dessa forma, não é negando as novas tecnologias - ou se isolando delas - que se pode lutar contra essas novas forças dominadoras: pois onde há força de opressão há resistência. É preciso então um esforço para localizar e para utilizar os saberes das lutas de resistência nas táticas contra a dominação.

Bibliografia

Breton, Philippe, A história da Informática, São Paulo: Editora Unesp, 1991

Deleuze, G. O ato da criação, Folha de São Paulo, São Paulo, 27 de junho de 1999, caderno Mais

Deleuze, G., Conversações, Rio de Janeiro: Ed.34 , 1992

Foucault M., Vigiar e Punir, Petrópolis: Vozes, 1987

Foucault, M. Microfísica do poder, Rio de janeiro: Edições Graal, 1984

Gates, Bill. A estrada do futuro, São Paulo: Companhia das Letras, 1995

Laquey Tracy e Ryer, Jeanne , O Manual da Internet, Rio de Janeiro: Campus, 1994

Lévy, Pierre, Cibercultura, São Paulo: Ed.34, 1999

Lyotard. J.F, O pós-moderno, Rio de Janeiro: Jóse Olympio, 1993

Machado, Arlindo. Máquinas de Vigiar IN: Máquina e Imaginário, São Paulo: EDUSP, 1993

Sfez, Lucien, Crítica da Comunicação, São Paulo: Loyola, 1994

Valente, J.Ar. Computadores e conhecimento, Campinas: Gráfica Central da Unicamp, 1993

Weixel, S. Como usar o PC, Rio de Janeiro: Campus, 1995

http://www.ccuec.unicamp.br/revista/infotec/educacao/educacao9-1.html - acessado em 07/10/2010